Parando pra pensar e revisar os temas de meus últimos textos aqui, vejo que o assunto religião tem frequentado direta ou indiretamente minhas tortas e tortuosas linhas. E eu, que tô longe de ser Deus, portanto, não tendo mesmo a pretensão de escrever certo, preciso novamente me dedicar a isso.
Tenho visto circularem protestos/respostas inflamadas contra a bancada evangélica, numa linha “O estado é laico”, “Discutam política e não religião”, “Isso é um congresso, não uma igreja” e por aí vai… Preocupante! Ora, pra quem não sabe, sou ateu (não posso dizer que de pai e mãe certamente, sendo filho de uma kardecista e dum católico de fato praticante) e, portanto, “neutro” (como se houvesse neutralidade neste mundo… Ó, Brecht, me perdoe por essa) neste ponto. Vejo dois probleminhas (que de pequenos nada têm) nisso tudo. Primeiro, e já citei isso noutro texto (Conclaves, entraves…), a generalização antievangélica que cria o mesmo pressuposto de estereotipação que tanto se combate no discurso de intolerância às chamadas minorias. Depois, a ideia autoritária (sim, autoritaríssima!) de se estabelecer uma censura nos espaços políticos. Pelamordideus (olha Ele aí, gente!)! A própria discussão política tem que criar suas pautas. É assim que funciona. É duma arrogância, já realizada a eleição, dizer que esta ou aquela representação não merece voz! Gostemos ou não (e eu não gosto nem um tiquinho!), essa criticada representação e suas intervenções refletem o pensar e querer duma porção não desprezível de brasileiros. São obscurantistas, temerários, inquietantes, mas também o são vários discursos que lhes tentam dar respostas num reativismo simplista e, por que não dizer, bolante.
É preciso, enfim, ideologizar o discurso acerca dessa questão. Afinal, a mercantilização da fé é pra lá de coerente na sociedade em que vivemos, não? O que se tem, em grande volume, na base desse processo, são trabalhadores desvalidos, em tudo depreciados e marginalizados pelo próprio capital. O dízimo é até barato. Numa vida de agrura e desespero, qual o preço justo pra esperança?
Ah… já que me reivindiquei ateu, é preciso falar um pouco dum certo ateísmo esclarecido que tem graçado por aí… Algo do tipo “Nossa! Como eu sou ateu! Como é inteligente e superior ser ateu!”. E como em meio ao pensamento de esquerda esse modus operandi é difundido! Bem, costumo dizer que não sou ateu em contraposição ao cristianismo. Sou ateu pela impossibilidade total de crer em qualquer coisa além da materialidade do mundo. Isso não visa a agredir ninguém. Na graduação, por um ano e meio pesquisei Mitologia, área quase inexistente no Brasil e que estuda os complexos míticos humanos. Foi uma experiência muito rica pra me ajudar a organizar meu pensamento sobre religião. Costumo dizer que Afrodite, Deus, Thor pra mim estão no mesmo rigoroso patamar. Isso, às vezes, choca os teístas. Mas se trata exatamente disto. Acredito tanto em Deus quanto um cristão crê em Apolo. É tudo mitologia no fim das contas. E não há qualquer sentido depreciativo na utilização que faço do termo mitologia. A arrogância, sobretudo dos grandes complexos míticos monoteístas− cristianismo, judaísmo e islamismo− é que atribuiu percepção pejorativa a esse termo. Sempre lembro que Sócrates foi morto por ser ateu. Ou seja, quando historicizamos essas crenças, vistas prosaicamente como meras “mitologias”, no sentido mais depreciativo possível, encontramos sempre pontos em que elas foram institucionalizadas e “pra valer”.
Dito isso, tenho plena consciência de que ser ateu leva a uma dupla possibilidade de interpretação: ser contra as crenças de base religiosa ou lhes ser indiferente (na óbvia medida do possível, dada todas as situações de interação social ampla que as inclui direta ou indiretamente) [Essa ambiguidade vem do próprio prefixo –a grego que tanto poderia atribuir a ideia de negação quanto a de privação, sinônimas, inclusive, em tantos contextos]. Me vejo claramente no segundo grupo. Sou do tipo que em formulários, quando do preenchimento do item religião (sinistro um formulário qualquer que questione isso, não?) ponho sem religião, pois que não me passa pela cabeça preencher ateu, tal qual fosse isso uma crença também religiosa. É justamente uma impossibilidade de crença. Dependendo do grau de flexibilidade do formulário posso preencher jedi. Acredito muito mais na Força do que em qualquer proposição religiosa outra. Lembro duma amiga me questionando sobre isso e dizendo que era absurdo porque o Mestre Yoda e tudo mais era criação de um homem. Virei pra ela, olhei-a candidamente e disse “É mesmo? Então, foi um ser humano que criou as histórias de Guerra nas Estrelas?! E que outras histórias sobre crenças no incompreensível o ser humano criou?”. Em tempo, no Reino Unido, o jedaísmo é a quarta maior crença religiosa! Já pensaram que, no caso duma hecatombe, se outra civilização descobrisse vestígios de nós, poderia interpretar o jedaísmo como religião de culto pleno? Viajante?! Será?!
Então, é isso. Sou ateu com três pequenas exceções: a Força jedi (já explicada), São Judas Tadeu (afinal, ele é protetor do Mengão) e Bastet (a deusa-gato dos egípcios.). Salvo isso, sou convicta e irreversivelmente ateu. E tenho a consciência que o debate entre ateus e teístas não tem resolução prática. Nem agora nem daqui a sei lá quanto tempo (já tô projetando séculos pra frente…). Mesmo que a Física consiga unificar a relatividade com a mecânica quântica produzindo a propalada Teoria do Tudo, ainda haverá espaço pra se buscar conforto e acolhimento no inexplicável. E como ninguém vai voltar da morte com essa resposta, sigo ateu, mas, torcendo que, caso exista algum deus, que ele não seja revanchista e tenha senso de humor. Sabe-se lá, né?
O que tô tentando dizer, desde o início do texto é que precisamos ter espaço pras muitas crenças ou descrenças, com tolerância plena. Voltando à questão da contraofensiva à representação parlamentar evangélica, não dá pra encurtar ou simplificar as coisas pelo ímpeto de reação. Não dá pra praticar intolerância pra se combater intolerância. Simples assim.
100% de tolerância é por aí…
Nessa semana, tivemos uma data que deveria ser consagrada à luta contra a intolerância. Em 28 de março de 1431, ironicamente e com trocadilho e tudo, depois de Cristo, foram proferidas as 70 (!!!) acusações que levaram Joana D’Arc ao martírio na fogueira.
Fica aqui uma reflexão sobre algo que os mutantes já sentem há tempos na pele.
Piadinha ateia:
− Jesus Cristo é o senhor?
− Não. Sou eu não, mas pergunta pra aquele cara ali da frente. De repente, é ele.
E concluo com a frase que sempre encerra minhas provas: Que a Força esteja com vocês!