Arquivo do dia: 31 de julho de 2014

Para conhecer cidades


selaron

A primeira medida para conhecer a cidade é sair do veículo próprio, quando se tem um. Fechar-se na máquina-propriedade acompanhado/a da irritação com o sinal vermelho, do carro lento na pista errada, do pedestre incauto atravessando a via geram uma autofelação constante, em que o falo simbolizado pela marcha e pelo carro que adentra as vias cria a ilusão do desbravamento corajoso aliado à ideia de que suas necessidades são mais importantes que a dos outros.

Convido, então, ao passeio. A pé, de ônibus, de trem, de metrô. É importante variar os meios, atento aos trajetos e aos transeuntes, num caminhar ambíguo, porque simula distração, mas se concentra nos pormenores e nas impressões dos sentidos.

Só é possível conhecer os espaços, considerando os aromas nem sempre agradáveis das vias, as matizes nem sempre policromáticas dos ambientes, os sons nem sempre harmônicos que integram vozes, músicas, buzinas, britadeiras, tiros, o clima com o arrepio da pele causado pelo vento gelado nas sombras de inverno.

É importante um olhar omatídeo, como o dos insetos que enxergam simultaneamente em várias direções. Não exatamente para proteger a bolsa, mas para se dar conta das vidas pulsantes ou dormentes que nos cercam. É possível supor histórias marcadas nos rostos de quem vai, de quem vem e de quem se queda sentado no meio-fio ou deitado, fazendo da rua a casa, do céu o teto, do chão a cama.

É preciso sofrer encontrão, ouvir desculpas, não ouvir desculpas, pisar na imundície, irritar-se, limpar-se, sentir fome, saciar-se ou não. É preciso observar as cores, os odores, os amores. É preciso agir como um turista de si mesmo para abrir-se ao olhar tão tomado do hábito, para enxergar com mais vida as vidas passantes, para trocar a automatização e o enclausuramento pela individuação não individualista, pelo reconhecimento da humanidade em si e no outro, para conhecer a cidade e um pouco de todos que nela habitam. 

selaron3

 

Categorias: Reflexões, Verso & Prosa | Tags: | 1 Comentário

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