Arquivo do dia: 28 de junho de 2013

O poder da menina e dos souvetes


Imagem              A mãe teve um imprevisto e, desesperada, pediu à mulher que cuidasse da menina. Por umas horas apenas, ela pode chorar, por favor, não se sinta humilhada, desculpe, está difícil pra todo mundo e para as mães, como sempre.

             Leve tensão inicial entre pouco mais que estranhas. O território é o da mulher : seus confortos e chateações. A menina traz seus pertences: brinquedos, bonecos, um travesseiro. Entre elas alguma timidez e um minúsculo manual do usuário: ela costuma dormir logo, ela entende tudo, não dê mole, ela é capaz de tudo. Assim,  de olhar para os 50 cms de gente, ninguém diria. Em todo caso, a mulher, cuidadosamente, tentou se incluir em seus possíveis planos. Vasculhou a bolsa da outra, fingiu surpresa, convidou à partilha de brincadeiras e descobriu que a pequena tinha a convicção dos grandes espíritos. Não tinha grande vocabulário, é verdade, mas abusava da assertividade: olha que bacana esse quebra cabeça… náo… vamos brincar com o coelho… náo…olha esta boneca… náo… quer ver televisão… náo… que livro bonitinho, vou contar essa história… náo…quer dormir…náo. Instalou-se o silêncio. A mulher temendo algum surto da outra que, mirando-a com seus grandes olhos de esfinge, espelhava a inquietação de ambas. Não sabendo mais o que fazer, intuiu que cabia à anfitriã dar a ambas salvo conduto para fora da zona da empatia obrigatória: vou trabalhar, ela disse, se quiser deitar, aqui está seu travesseiro,  se quiser brincar, seus brinquedos estão aqui, se precisar me chame. Não estava segura de ser compreendida e blefou; a verdade é que da sua mesa não a perderia de vista. Funcionou. Logo a menina parecia absorvida por um boneco e a mulher trabalhava. Minutos depois, um sobressalto. A menina sumira, não atendeu ao chamado nem quando foi localizada, plantada em frente à porta da geladeira. Souvete, disse a pequena e não era um pedido, era uma ordem. Impossível, lamentou a mulher,  não havia como atender. Frutas foram recebidas com um olhar vazio e abanar de cabeça. Depois de muito insistir, a mulher se lembrou que na hospitalidade caipira a regra é clara : qualquer visita tem direito a mesa farta, salvo caso de penúria extrema, sem desculpas. Precisava negociar algum tempo. Não tem sorvete aqui, pode olhar, vou trabalhar, você vai brincar, vou trabalhar, você espera, depois vamos sair para tomar sorvete. Experimentou a comunicação telegráfica, alta, clara e com gestos abundantes, se esforçando por destacar a palavra mágica que viu a mãe usar com maestria. Mamãe vai TRABALHAR, você fica aqui. Funcionou. A mulher voltou ao trabalho enquanto a menina mergulhou em seus próprios afazeres que consistiam, basicamente, em rasgar as folhas de papel que não queria rabiscar, sem renunciar ao prazer de demarcar o território à volta com cores. Não parece muito feliz mas pelo menos não chorou, pensou a mulher, suspirando,  depois de cumprir as tarefas inadiáveis e antes de anunciar a realização da promessa. Vamos tomar sorvete? O efeito não podia ser mais inesperado. Os olhos da outra brilharam, deu um salto e gritou : souvete ! Sacudiu-se como quem dança, bateu palmas e fez abrir um sol no meio da sala que quase derreteu a mulher. De repente, já eram como duas ninfas no bosque a cirandar de mãos dadas  : souvete ! souvete! souvete! souvete!  numa alegria que parecia não ter fim, num congraçamento duramente conquistado, numa plenitude da partilha entre almas que se compreendem, sem que nada fizesse suspeitar a inexplicável desafinação: mamãe… olhos se enchendo de água devagar mas ameaçando virar desespero generalizado.

        Segundos de puro pânico antes que a mulher começasse a alinhar frases malucas sobre mães que vão trabalhar e deixam crianças com fadas boas que aceitam ficar elas, desde que não chorem e as levam para passear na companhia de coelhos mágicos que são amigos do dinossauro desbotado, por acaso já tinha ouvido falar da história do dinossauro contente? Os olhos secaram e se fixaram na boca da mulher.  Ah, é verdade, já tinha ouvido falar que a menina gostava de dinossauros. Com certeza ia gostar muito dessa história de dinossauro. Era uma vez um dinossauro contente que vivia em um apartamento no 12º andar junto com sua amiga menina e o amigo coelho mágico. Daí que em um belo dia o dinossauro pediu à menina para ir à piscina. Daí que a menina não tinha piscina e resolveu levar o dinossauro para o banho. Daí, como ele se molhou todo, tiveram que ficar os dois brincando ao sol até secarem. Era um dia de muito sol, a menina podia ficar vermelha, por isso resolveram brincar de passar o super creme protetor de meninas que vão sair no sol. Daí apareceu a mãe do dinossauro e disse – nossa como você está desbotado ! – e pediu para brincar também. Brincaram, brincaram muito,  até ficarem cansados. Quando estavam cansados de brincar de passar creme para o sol, a menina teve uma ideia: vamos tomar sorvete? Então a menina  pediu para a mãe do dinossauro levar todo mundo tomar sorvete. Daí saíram todos juntos, muito contentes, para procurar a mais linda loja de sorvetes que existe. E o coelho mágico ? Claro, daí o coelho mágico, que tinha sido esquecido dentro da bolsa, veio correndo atrás deles e pediu para brincar, só que ele estava invisível mas elas podiam vê-lo, porque a fada fez uma mandinga na cabeça da menina. Daí foram todos caminhando pelas ruas: o dinossauro, a menina, a mãe-fada do dinossauro e o coelho mágico que estava no modo invisível. Foram olhando os carros, as árvores, a mãe do dinossauro falando com pessoas que queriam apertar a bochecha da menina e pediam beijos que ela não dava, parando  um pouco para descansar, esperando o sinal abrir para atravessar a rua e daí chegarem ao shopping, único local perto dali, onde poderiam conseguir o melhor, o mais doce, o mais saboroso e narcótico sorvete, se o anjo das fadas temerárias ajudasse. No entanto ainda tinham que passar pela floresta por isso escalaram a grande montanha-escada e seguiram, parando para olhar uma caverna aqui, outra ali, até que a fada- mãe do dinossauro se lembrou de que aquela não era uma floresta qualquer… Era a grande floresta negra, cheia de cavernas traiçoeiras onde viviam sereias más… Binquedo?…  e que para não ser arrastado pelo canto delas, era preciso caminhar com muito cuidado, talvez caminhar pela trilha sem olhar para os lados… Binquedo. A menina sabia a senha da caverna. Compa binquedo. A grande fada estremeceu. Não tinha nenhuma varinha mágica mas sabia que a convicção de uma velha bruxa é boa defesa contra as sereias más. Não, ela disse, vamos tomar sorvete. Binquedo, quéo binquedo. Era o grande espírito, de novo, a falar pela pequena boca. A bruxa se apoderou da voz da mãe do dinossauro. Então vamos voltar para a casa. Lá está cheio de brinquedos e você nem brincou com todos. Agora eram dois enigmas se encarando enquanto duendes passavam, indiferentes. Vamos. A grande fada emprestava a voz, a grande bruxa, a convicção. Vamos. O sorvete está nos esperando. A pequena voltou ao caminho, como hipnotizada, com a mãe do dinossauro pensando que tinha grandes poderes de fada-bruxa. Até chegar à fantástica loja de sorvetes e cair na real. A menina gostava de sorvete chocolate. Não apenas gostava. Ele despertava nela um novo padrão de interação com o mundo. Em uma língua impossível de ser transcrita, se interessava, pela primeira vez e genuinamente,  pelo outro, isto é, pela mulher. Porque a mãe do dinossauro não queria ? Seria verdade que as fadas-bruxas não gostam de sorvete? Eram como velhas companheiras agora, sentadas à mesa, cada uma se divertir como podia.  A menina a se lambuzar, a mulher ao telefone com a mãe da menina, para quem tinha pouco mais a dizer que: aqui está tudo bem, não se preocupe, é a vida. A menina parou com a colher no ar, atenta, depois riu e repetiu : é a vida. E repetiu e riu. É a vida. É a vida. A mulher desligou o telefone. É a vida, disse para a menina, é a vida. A menina ria, ria. A mulher riu também e sem nenhuma ideia melhor do que fazer, partiu para se lambuzar com palavras: vida corrida, espremida, doída e doida varrida. A menina ria. É a vida, comida. A menina ria. É a vida, ferida. Espirravam borrifos de chocolate. É a vida, entretida. Gargalhava. É a vida, sofrida. Já não fazia tanto efeito. É a vida, escorrida. A menina enfim tinha terminado a taça e aceitou passar pelo lago de azulejo para se livrarem das melecas e dos grudes de salamandra. Depois, caminharam para casa. A menina ia cansada e a mulher certa que, sem mais delongas, tudo acabaria com a bendita soneca. No entanto, mal a porta se abriu e a pequena parecia ter voltado a um velho lar do qual tinha saudades. Correu por todo o apartamento, subiu e desceu dos móveis, revirou almofadas, se jogou no tapete como um cãozinho rebolando na relva, satisfeito. A mulher lembrou-se de como era sentir uma grande aventura em um pequena aventura, esqueceu da mãe da menina e se deixou levar. Brincaram, brincaram muito, até ficarem cansadas. Daí a mulher quis saber o que mais agradaria à sua convidada. Música? Músga. Era definitivo, estavam se entendendo, agora a grande sentia que estava no controle e resolveu espalhar os cds para que a pequena ajudasse a escolher. Fez indicações, ameaçou demonstrar as virtudes de um e outro mas o dedo da menina insistia em cair sobre o mais improvável. Não, não, dizia a mulher, assertiva, segura de suas velhas certezas. Esse, não! Echi, echi, repetia a jovem criatura com a persistência de quem não reconhece o tempo como medida.

           Alguns momentos depois, prostradas no sofá, cantavam ay carmela, ay carmelaaaa. A menina deitada sobre o colo da mulher com os olhos  ainda arregalados e um sorriso maroto.  É capaz da mãe ter razão, pensou a mulher, essa menina parece mesmo capaz de tudo.  

https://www.youtube.com/watch?v=4QXSYJPTiwc

PS E não é que ao procurar esta música, encontrei este singelo documentário sobre a grande Dolores Ibarruri Gomez, La pasionaria ? Que grandes aventuras se escondem nas pequenas. Ay, Carmela !  

https://www.youtube.com/watch?v=3fIN-w6MPJc

Categorias: Sociedade, Verso & Prosa | 4 Comentários

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