Arquivo do autor:Moacir de Sousa

O implacável chifre de Rutherford


quimica

Quando eu morava em Vila Isabel, assim que chegava do trabalho fazia hora extra no bar do Costa antes de ir pra casa. O pós-expediente com cerva e bate-papo é o esquema tático que nos leva à prorrogação na partida contra a dona foice.
De quando em vez aparecia um sujeito que bebia sozinho na última mesa da calçada. Oito brahmas eram o número sibilino do camarada. Depois da quarta gelada, ele resmungava hieróglifos. Na sexta, a boca torta dava umas travadas de catraca. Virava o derradeiro copo e saía puto como se fosse tomar resolução de quem pensa e repensa. (Pagava a conta adiantado já pra sair de supetão)
Não passavam três dias, os hieróglifos e as catracas voltavam ao bar. Após semanas nessa tranqueira de serrote, perguntei pro garçom Silas a identidade do pobre homem. Era um professor de química que diziam estar desgostoso da vida depois de se separar da mulher.
Como na época já tinha sólido conhecimento sobre o assunto, fui lá prestar solidariedade etílica ao desafortunado da hora. Cheguei, me apresentei, puxei assunto. Ele apenas me olhava. Fixo. Sem graça, ia me preparando pra cair fora. Então ele destravou:
― Rutherford descobriu que os elementos podem ser transmutados. Estipulou as bases para a interpretação da estrutura atômica. Pouco depois, Bohr finalizou a teoria atômica. Estes e outros avanços criaram muitos ramos distintos na química, que incluem a bioquímica, química nuclear, engenharia química e química orgânica. Rutherford dizia que um verdadeiro físico-químico sopra suas vidrarias e resolve suas próprias equações. Sabe o que penso de tudo isso? Eu quero que os dois vão pra puta que pariu. Que enfiem suas teorias no centro do olho do cu gordo deles. Devem ter sido dois cornos como eu. E o chifre é o único elemento químico que sobrou na minha tabela periódica de cornudo. Agora você vai pra casa do caralho e me deixa em paz.

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Sancta Simplicitas!


sancta simplicitas

Jan Hus era um teólogo do Sacro Império Romano, na virada do séc. XIV. Como reformador é considerado um dos precursores da Reforma Protestante.  Pregava contra a corrupção na Igreja e a ostentação no alto clero. Sua principal conclusão era baseada em Cristo como o líder da Igreja e não o papa e os cardeais. Este papel foi fundamental para o despertar da Igreja Protestante.

O papado não gostava daquelas ideias de Hus. Deram logo um jeito de condená-lo por heresia.  Em 06 de julho de 1415, meteram-no na fogueira e, antes de arder em chamas, uma inocente senhora, sem mesmo entender seus motivos, colocou mais um pedaço de madeira embaixo do mártir.

Foi então que ele disse: ― Sancta simplicitas! (Santa ingenuidade!)

Seiscentos anos depois, o Papa Francisco realizou uma “liturgia de reconciliação” para marcar a morte de Jan Hus, em conjunto com representantes da Igreja Hussite da Checoslováquia .  Disse o papa: “A morte de Jan Hus feriu gravemente toda a Igreja Católica e se deveria pedir desculpas por isso”

Há alguns anos, um garoto furtou um celular no bairro onde eu morava. Os moradores capturaram o rapaz. Enquanto muitos davam socos e pontapés, um senhor, já com idade avançada, saiu de casa com uma garrafa de álcool na mão. Aquele velhinho, que tinha por hábito varrer a calçada todas as manhãs, queria atear fogo num ser humano pelo fato deste ter furtado um celular. Morreria um ladrão, nasceria um assassino.

Nas manifestações de ontem contra o governo, entre tantas bisonhices, dois cartazes me chamaram atenção em especial. Tanto pela mensagem insana quanto por quem sustentava os dizeres.  O primeiro vomitava: “Por que não mataram todos em 1964?”; o segundo seguia o horror: “Dilma, pena que não te enforcaram no DOI/CODI”. Além do conteúdo bizarro da tortura e execução, outro fato em comum é que os cartazes eram suavemente segurados por duas senhoras com carinha de vovó simpática daquelas que fazem propaganda na televisão.  Certamente essas senhoras orgulham-se por terem criado e educado cidadãos de bem, assim como fazem um belo almoço de domingo para reunir a família à mesa. Amam seus netos e netas e fazem de tudo para agradar a todos. Qual seria a razão se serem incapazes de  julgamentos morais e defenderem o extermínio de seres humanos? Elas não podem ser olhadas como monstros, mas como mães zelosas, ainda que incapazes de resistir ao ódio. Um ódio que nunca tiveram, nem alimentaram. Mesmo sem conhecê-las, veríamos que não possuem histórico ou traços fascistas. Também não apresentariam caráter distorcido ou doentio. Agem segundo o que acreditam ser o seu dever, movidas pelo desejo de participar do processo político? Cumprem ordens internas sem questioná-las, com o maior zelo e eficiência, sem refletir sobre o bem ou o mal que podem causar?

A trivialização do extermínio corresponde ao vazio do pensamento onde a serpente faz seu ninho.

Para o jovem morto no linchamento fiz esse poema. Para aquelas senhoras ainda não tenho palavras.

sancta simplicitas

passa veloz

na gralhada do dia.

furta-se e foge

o suposto maldito.

na praça de cores extintas,

vasto presídio.

entoando benditos

olhares piedosos

praticam o caloroso

arbítrio das contas em dia:

delícias do necrológio popular.

adesões, participações,

fiel assistência.

um benefício de fêmures cruzados.

abrindo caminho,

mãos que rezam

ateiam fogo

num ato de boa-fé.

o manequim vergado

lança um surdo gasnar.

logo o encobre a assepsia

de um sudário em chamas.

antes de seguirem para seus lares,

cumpre fazer o pelo-sinal.

no chão,

mingau vermelho esmaltado.

no termo da jornada,

centenas de igrejas

tocam a Ave Maria.

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Bariátrico


grotesco

Corria nos sonhos montado em seu ódio contra a própria genética. Rancores estupefatos da herança hereditária materna. Neurastenia calculada dividindo-se o peso pelo quadrado da altura. Comorbidades, diabetes, hipertensão, uma vida reduzida à escolha de técnicas bariátricas: banda gástrica ajustável, gastrectomia vertical e derivação bileopancreática. A depender do quadro mórbido pendurado na parede do quarto.

Nervosismo, insônia, aumento da pressão sanguínea, batimentos cardíacos acelerados, boca seca, intestino preso. A dependência química ainda é um refrigério. O rigor medicamentoso e as restrições alimentares causam-lhe fastio e repugnância.

Lembranças de amores represados, do sexo interdito. Sarcasmo dos colegas da escola, bulling diário.

Por que não comprar armas e vingar-se de todos? Por que não praticar a arte da destruição? Kandinsky mortífero! Predador Dali!

Poderia ser Raskólnikov sem culpa, sem angústia de fazer algo importante. Dividir os indivíduos em ordinários e extraordinários. Planejar e concretizar, livrando-se da luta com sua consciência, a máquina horrenda. Sem ver o tamanho do crime, mas as pessoas que possam saber e desconfiar do ocorrido. Mostrar que faz parte do grupo dos extraordinários, indivíduos capazes de cometer qualquer delito, ou infringir regras sem culpa alguma.

Por que não?

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Iniciação


supermercado

Eu nada seria não fossem aquelas senhoras do Supermercado Guanabara. Há cinco anos fui iniciado por elas na arte e segredos das boas compras. Após breve período como auxiliar de uma veterana na condução de suas compras, foi possível adquirir  iniciação nos mistérios das seções e categorias. Foi usado um sistema de graus para identificar minha evolução como aprendiz. A seção de Frutas e Verduras foi a primeira etapa. Depois Material de Limpeza e Higiene. Na sequência: Cereais, Frios, Enlatados e Laticínios. A seção de Carnes e a de Peixes seguiu um ritual hermético e doloroso. O setor de Bebidas demandou menos tempo em razão da minha experiência de vidas passadas. O domínio das promoções, a cilada das gôndolas, o xamanismo diet e light, a prestidigitação das frutas e verduras, as distinções druídicas da alcatra e do contrafilé, a lista sagrada, a cabala dos frios e laticínios…

Após mais algumas tarefas e rituais particulares, compreendi o significado da ascensão de um nível de existência para outro nível superior. Fui orientado no caminho do equilíbrio financeiro e da plenitude do carrinho de compras.

Ontem, estavam todas em frente ao mercado com seus maridos. Fui apresentado como a esperança do vale machista das sombras. Os esposos foram chamados de “vermes pestilentos” e “abominações repugnantes”. Entretanto aquela reunião não teve apenas o objetivo de esculachar a macharada pinguça. Era uma despedida. Meu aprendizado havia chegado ao fim. Eu devia me fortalecer com o isolamento, sobreviver em outro supermercado, estar preparado para as dificuldades das compras sozinho. Eu chorei, solucei, esperneei. Levei um esporro das espartanas.

― Componha-se! Seja homem e largue nossas saias! Nós o ensinamos a não ser um idiota como nossos maridos! Vá embora e não volte mais a este mercado. Não olhe para trás.

As palavras duras não escondiam os olhos marejados. Virei-me e segui a ordem. Da profunda tristeza, logo sobreveio o contentamento e o orgulho. Tornei-me um homem de verdade.

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Paradoxo ortodoxo


orla privada

Sob nova direção

As praias do Nordeste estão sendo lagostizadas. O padrão lagosta afasta os pobres de um dos últimos espaços públicos na terra onde cantava o sabiá. Em Porto Seguro, os restaurantes no calçadão criaram uma barreira que impede completamente a vista do mar. A coisa é tão descarada que há até estacionamento para os clientes na faixa de areia da praia. Nas barracas gourmetizadas de Arraial d’Ajuda e Trancoso só é permitido sentar nas cadeiras com farpela mínima de 50 dinheirinhos por candango. Algumas fingem dar uma arregada, mas obrigam o turista cara de bobo a fazer a refeição na barraca. A cerva é uma amargura de 11, 12 contos.

As praias do litoral sul do Ceará seguem a lagostização. Na Praia do Futuro, naquelas barraquinhas rústicas de pescadores, comia-se caranguejo e bebia-se caipirinha o dia todo sem levar um susto. Hoje, a orla foi completamente privatizada. Os grupos econômicos construíram complexos de lazer que parecem com os condomínios fechados da Barra da Tijuca, no Rio. Piscinas pras crianças, lojas, shows de humor, bandas de música, bares, sorveteria, lan house, banco 24h, restaurante à la carte, buffet, espaço vip, spa, sauna, segurança privada… No Complexo Crocobeach, 400g de tilápia lasca o bolso do incauto em 90 pratas.
A partir de 17h acontece um fenômeno empresarial nas areias nordestinas. As praias fecham. Os empregados mal pagos recolhem as mesas e cadeiras. Tudo acaba de repente. Quando o sol se põe, não há mais um sirizinho como testemunha. Muito estranho.
Já dizia meu amigo Severino, irmão do finado Zacarias, lá de São José da Caatinga: dinheiro é bicho que não tem quem amanse. Basta mesmo é mais carga pro burro entender.

Cinepraga

O laboratório do mercado cinematográfico está sempre atento ao inconsciente coletivo da população mundial. O gênero Tiro, Porrada e Bomba é pior do que as Dez Pragas do Egito. Mais torturante que as Sete Pragas do Apocalipse somente o cine-catástrofe. A legião de vampiros e zumbis deu cria nas nauseantes séries de televisão. Os diretores junguianos de Hollywood anteviram o grande vazio existencial da humanidade e lançaram a onda de filmes de super-heróis. Os Vingadores já salvaram a humanidade duas vezes. Dos quadrinhos do Besouro Verde pulamos para o pastelão de efeitos especiais do Homem Formiga, que chegou este mês aos cinemas de todo o mundo para salvar a humanidade, desta vez, com a ajuda dos insetos. Se os seres humanos não conseguirem a redenção de si mesmos, o cinema americano logo criará o Homem Bactéria.

Paradoxo ortodoxo

Parlamentares corruptos acusam o governo de corrupção. Fazem barricada contra Dilma justamente por esta não impedir que eles sejam investigados por malandragem. Exigem proteção da presidente por seus atos corruptos e, em retaliação, ameaçam com o impeachment.

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Abyssus Abyssum Invocat


abismo

De modo a escancarar o distanciamento entre o povo e o congresso, a maioria dos deputados aprovou o financiamento privado de campanha, em que pesem os escândalos de corrupção envolvendo dezenas de parlamentares, governadores, empreiteiros e diretores da maior estatal do país.
O Legislativo fez-se de cego, surdo e mudo diante das reivindicações dos protestos de 2013. O apelo por mais participação popular levou um tapa da miserável classe política. Com a aprovação do financiamento privado de campanha o abismo de representatividade dessa casta repleta de vermes pestilentos atingiu a profundeza das trevas.
Está claro que o dispositivo eleitoral é mais do que uma farsa. Ele faz parte do aparelho repressivo contra os movimentos sociais, contra as novidades, contra as rupturas. A democracia representativa é patrocinada pelo poder econômico que se retroalimenta a cada eleição, sequestrando as esperanças emancipatórias do povo brasileiro.
A sórdida tentativa de mudar a Constituição de forma a legitimar a corrupção eleitoral forma a trincheira da abjeta plutocracia, em nome da esgarçada representatividade, contra os que querem uma verdadeira democracia popular. Os pulhas que nada fizeram querem criminalizar todos os que lutam por mudanças urgentes. Contrataram o carrasco e construíram a forca. Faltava apenas a ajuda da calhorda mídia empresarial para sair por aí a procura de um réu para imputar-lhe a culpa e terminar o serviço. O réu somos nós.
Nós, vítimas dos canalhas donos de oligopólios midiáticos, da escória da politicagem, de repugnantes articulistas lambe-botas de patrão, da velhacaria oligárquica e de excrementos de ultradireita. Todos patifes, todos impostores, todos vermes.
Que o povo mande fazer justiça pelos crimes contra a democracia popular e outras vilanias de que essa corja constitui chefe e cabeça, com a mais escandalosa temeridade contra a soberana e suprema autoridade do povo brasileiro. O poder que emana deste povo ainda mandará que essa escória seja levada ao degredo em terras longínquas e ermas. Que seu maldito legado seja conservado em poste alto até que o tempo o consuma. Que suas habitações sejam arrasadas e salgadas e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que conserve a memória de tão abominável classe. O povo brasileiro, usando da atribuição que lhe confere, há de decretar a verdadeira justiça.

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Mickey Mouse e a Telefunken


mickey

As reminiscências sobre minha educação estão nos escaninhos da memória afetiva de uma casa no final da rua onde eu morava, no subúrbio do Rio de Janeiro. Eram três irmãs amigas de minha mãe. Não me lembro bem, mas acho que elas eram uma espécie de explicadoras. Certamente não havia cobrança. Minha família não tinha condições financeiras para pagar por esse tipo de serviço. Ficávamos eu e minhas duas irmãs naquela casa, com aquelas pessoas simpáticas e acolhedoras. Tenho uma vaga lembrança de cobrir letras e fazer desenhos coloridos num papel. Havia desenhos de personagens do Walt Disney pela casa. Lembro-me tentando desenhar o Mickey Mouse. Gostava do sorriso daquele ratinho.

No cantinho do corredor de minha casa, havia um pequeno buraco na parede. Eu ficava imaginando o Mickey morando naquele buraco. Colocava pedacinhos de miolo de pão na saída daquela fresta, na esperança de vê-lo e pedir para ele brincar comigo. Toda aquela atmosfera  de criação de uma outra realidade trazia-me contentamento. Eu descia a rua, ansioso para chegar àquela casa que me embalava num mundo de sonho e fantasia.

Quando pela primeira vez assisti a um filme da Disney na televisão, causou-me muita estranheza o fato de os personagens não serem coloridos. Não entendia que o aparelho lá de casa é que era preto e branco. Isso fez com que eu pintasse compulsivamente todos os desenhos que me vinham à mão. Como se minha missão fosse colorir o mundo à minha volta.

Acho que de tanto a gente reclamar da televisão, meu pai arranjou uma película de três cores para tentar apaziguar o motim. No início, o jeitinho que meu pai pode arrumar surtiu efeito. Eu mesmo achava que havia algo de errado em ver pessoas de cores diferentes na mesma cena. Entretanto, alguma ordem interior dizia para não reclamar mais. Creio que essa mesma ordem foi dada a minhas irmãs, pois elas também pararam de maldizer o infortúnio do preto e branco ou da esquisitice tricolor da televisão.

Quem nunca se conformou mesmo com a vida desbotada foi minha mãe. Quando a vizinha comprou uma TV em cores, ela tratou logo de assistir sua novela preferida por lá. O bom é que éramos arrastados por esse ato de rebeldia materna. O orgulho ferido de meu pai deixava-o sozinho em casa. Eu sabia que minha mãe usava essa correlação de forças para pressioná-lo a comprar uma TV nova. E funcionou.  Não demorou muito e um caminhão deixou uma Telefunken lá em casa. Com o tempo fui entendendo melhor a estratégia de minha mãe: evitar o confronto direto, mas bater fundo no orgulho tolo do marido. O conhecimento da psicologia masculina fez com que ela tirasse meu pai do conformismo cotidiano de uma vida em família.

Voltemos à Telefunken. Talvez tenha sido o dia mais feliz de minha vida. Ver um filme colorido, no sofá de casa, bebendo kisuco e comendo bolinho de chuva.

Talvez tenha sido o dia mais triste da minha vida. Trocar a casa acolhedora das letras e dos desenhos da Disney pelo entretenimento da Telefunken. Tempos depois, a televisão já não tinha a mesma graça.  Logo veio o entendimento infantil de que, ao se ganhar um brinquedo novo, o antigo fica jogado pelos cantos, esquecido e abandonado. Sem nenhum agradecimento pelos momentos felizes proporcionados. A vida também era isso.

Televisões passaram em minha vida, até o dia em que encontrei Dulcimar na rua, uma das três irmãs da Disneylândia de minha infância. Ela me reconheceu e me deu uma passagem para os momentos encantadores daquela casa que me proporcionou as primeiras lições. Ao chegar em casa, narrei o encontro para minha esposa. Demonstrei saudade daquela época. Ela então disse: ― Você não está com saudade daquele tempo, você está com saudade de si mesmo.

Essas palavras ficaram tatuadas na minha mente.

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E o troféu Patife-Mariola vai para…


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Equilíbrio de Nash

O termo vem da Teoria dos Jogos. Representa uma situação em que, num jogo envolvendo dois ou mais participantes, nenhum jogador tem a ganhar mudando sua estratégia unilateralmente.
Na terra onde canta o sabiá, esse equilíbrio esportivo tem como modelo exemplar as grandes empreiteiras, que supostamente concorrendo, cada uma teria o interesse de conquistar o máximo. Só que não. Quando estão disputando o mesmo mercado, a conquista do máximo é impossível para todas. E foi assim que os maganos criaram o Clube da Propina, uma mamadeira gigante cheia de petróleo. Os consórcios da quadrilha seguiram e operam o mesmo jogo sujo nas obras da Copa e das Olimpíadas.

Demônios do Capital

No sétimo portal dos infernos, empresários fazem seguro de vida de funcionários, tendo como beneficiária… a própria empresa. Essa vilania do Grão-tinhoso começou com as grandes corporações norte-americanas que compravam apólices de vida dos principais executivos. Por serem funcionários fundamentais e caros, eles eram vistos como ativos da companhia. A partir dos anos 80, a criatividade dos mafarros expandiu-se e chegou ao chão das fábricas. Ganhou apelidos de “seguro do zelador” ou “seguro do caipira morto”.

A morte do funcionário da Wal-Mart, Michael Rice, de 48 anos, trouxe à luz o mundo das trevas. A Wal-Morte tinha feito um seguro de cerca de US$ 300 mil para o falecido. O dinheiro ficou pra quem? Para os anjos caídos da Hell-Mart!!
Enquanto isso a viúva do ex-trabalhador da empresa sofria com o luto e a luta pela sobrevivência. Depois do ritual macabro, a gigante varejista confessou seus atos demoníacos de ter feito esse tipo de seguro para milhares de empregados.

No pé do ouvido

 Você aí que não larga o diabo do celular nem quando está dirigindo. Não disfarça não! É com você mesmo que estou falando. Seu tarado! Fica dirigindo, fofocando com o aparelho do cão no pé do ouvido e enviando zap zap pro sétimo portal dos infernos. Quer morrer? Então vara o Palácio Guanabara, veloz e furioso, a 200 por hora. E leva junto com você a tranqueira do sub-troço do Pezão. Ou então anda de jumento, porque dois asnos sempre se entendem.

E o troféu Patife-Mariola vai para…

Posso garantir que não tem ninguém mais machucado do que eu. Falo com muita franqueza e com muita sinceridade. Eu sofro na alma, fui atingido na alma pelo que está acontecendo. O mais machucado de tudo isso foi eu”.

Beto Richa, o mártir injustiçado

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Serial kids: o terror dos inocentes II


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A hora do mercado

Tenso e apressado, estava eu pilotando meu carrinho de compras no engarrafado Guanabara. Refletia distraidamente sobre o porquê de a Divina Providência não ter me predestinado ser herdeiro de uma família muito rica…
Eis que um traste atrevido, em altíssima velocidade, tromba com seu carrinho no meu calcanhar. O meliante tinha coisa de 1,30m, 10 ou 12 anos de pura maldade. Não prestou socorro e evadiu-se da cena do crime. Ainda que mortalmente ferido, parti em sua captura. Curvas radicais na seção de laticínios, retas velozes nos frios, um pit stop pro cafezinho 0800… Após uma caçada insana, lá estava o vândalo ardiloso, com seu cinismo petulante, escolhendo seu biscoito Trakinas favorito. Diante do flagrante delito, denunciei o terrorista à Veja e à Globo. No dia seguinte, sua careta dissimulada estava estampada na mídia escrita, falada e manipulada. Enfim, a justiça foi feita.

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Doce vingança

Mais de 2 horas esperando ser atendido por uma despreocupada dermatologista pra tratar as perebas de uma dermatite. A ortodoxia dos planos de saúde traz sob seus cuidados… a morte.

Uma fome medonha revirava minhas tripas. Foi quando eu vi aquele moleque ranhento comendo minha batatinha ruffles preferida. Quando a mãe dele entrou no consultório, iniciei minha batalha pela sobrevivência.
― Me dá uma batata?
― Não!
― Só uma!
― Não!
― Olha aqui, moleque, se tu não me der essa batata, eu vou tomar tudo.
― Mãeeeee!!!!
Me afastei um pouco e peguei uma daquelas revistas idiotas típicas de consultório médico para bater em retirada. Meu inimigo me encarava com fúria animalesca. O traste egoísta comia mais rápido para alimentar meu ódio. Devorou tudo e deixou o saco vazio no assento ao lado.
Súbito, peguei o elevador, saí do prédio e comprei dois sacos da mesma batata. Voltei rapidamente e fiquei de frente pro cramunhãozinho. Uma por uma, eu mastigava lentamente… As mãos do ressentimento vão temperando seu plano a fim de saborear a vingança, pacientemente, sem pressa ou vacilo.

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Serial kids: o terror dos inocentes


órfã

Lilica Ripilica

Uma dessas coisas que acrescentam distração ao espírito atormentado de um ser grisalho é assistir a filmes de animação. Todos.
Uma pequena incompatibilidade com a plateia desse gênero cinematográfico tornou proibitiva minha ida aos cinemas. A reclusão é o efeito colateral de uma dose excessiva de criança. Digamos que a natureza é inversamente pródiga nas compensações: para cada alma dadivosa engendra um bando de pestinhas bagunceiros.
Na última vez que fui ao cinema deu-se o seguinte:
Terminada a sessão do Rei Leão, vi que não havia a fila maldita das pipocas gigantes. Só queria comprar um trident de hortelã. Mais rápida foi uma garotinha sardenta que se enfiou na minha frente como aqueles motoristas insolentes que ultrapassam pelo acostamento. Pediu dois baldes de pipoca, dois tanques de coca-cola e outras tralhas. Como não conseguia carregar o trambolho sozinha, ficava gritando pro palerma lesmento do pai ajudá-la. Ela gritava, gritava…
Eu só queria um trident.
Sob um olhar retrospectivo e privativo, bem que aquela menina poderia ter nascido na Islândia. E o pai na Sibéria. Seria um grande alívio para minha memória. Mas ela gritava, gritava… As sardas malignas tremulavam em meio aos esguichos lancinantes daquele obstáculo à minha breve felicidade.
Eu só queria um trident.
Não suportando mais aquele tormento, sussurrei no ouvido dela:
― Sabe o que acontece com o leão no filme?
― Não.
― ELE MORRE!!!
Parou de gritar. Chorava, chorava… Saiu correndo e chorando em direção ao pai:
― Eu não quero mais ver esse filme! O leão morre!!
Chorava, chorava…
Sinto-me bem fazendo uma boa ação, porém a prática daquela pequena vilania trouxe leveza ao meu espírito. A paz celestial cingiu-me com auréolas de nuvens douradas.
Eu só queria um trident. De hortelã.

os patos

Os patos

O bucolismo parnasiano dos jardins do Palácio do Catete contrasta com a trágica morte de seu dono. Seu Gegê não suportava mais as travessuras golpistas de Lacerdinha, o Corvinho da Guanabara. Escreveu uma carta, meteu um tiro no peito e entrou para a história.
Lagos, grutas, caminhos sinuosos e as árvores frondosas dão quietude e sossego. Os patos palacianos cantam seus mantras com tremas meditativos: qüém, qüém, qüém…
A paz celestial da minha leitura dominical nos jardins do Catete foi abruptamente interrompida por um ser de 12 ou 13 anos dedicados à perturbação do sossego alheio. O diabólico antibucólico espantava a patacoada Hare Krishna. Os bichos corriam e grasnavam impropérios contra o mafarrinho. E a mãe seguia sua caminhada indiferente à lambança do filho. A cumplicidade materna é avó de todos os males.
Cheguei-me pertinho dela e soletrei a solução em ficção:
― Minha senhora, seu filho está correndo perigo. Ontem, um pato arrancou um pedaço do dedo de um menino que estava brincando no gramado.
― Marcus Vinícius!!!! Esses animais mordem!!!
E a leniente saiu em carreira sem perceber que o rabioso raivento era o periculoso na narrativa criminal.
Enfim, o sanhudo retirado de cena, a paz foi restabelecida. A marrecada olhou pra mim como se estivesse agradecendo um ato heroico. Acenei e murmurei um duplo quém quém.

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