A Vaca Fardada
Na manhã do dia 31 de março de 1964, o general Mourão Filho, o “Vaca Fardada”, disparou telefonemas para todo o Brasil, dizendo: “Minhas tropas estão na rua!”.
Na noite do mesmo dia, ordenou que as tropas da IV Divisão de Infantaria que comandava em Juiz de Fora seguissem para ocupar o Estado da Guanabara. As forças do general foram reforçadas por dois outros regimentos golpistas. Seguiram sem resistência e terminaram por se confraternizar no meio do caminho com os milicos do I Exército que haviam partido do Rio de Janeiro com a missão de confrontá-los.
E assim o Vaca Fardada antecipou a quartelada que deixaria o país durante 21 anos nas trevas.
As pesquisas de entidades de Direitos Humanos, dos familiares e ex-presos políticos e de comissões especiais indicam um cenário devastador:
426 mortos e desaparecidos políticos, sendo 30 no exterior, e 70 na repressão
à Guerrilha do Araguaia;
1.118 assassinatos de trabalhadores rurais, 2 mil waimiri-atoari assassinados
por resistirem à construção da BR-174, Manaus-Boa Vista;
centenas de presos comuns exterminados por Esquadrões da Morte;
50.000 prisões arbitrárias;
20.000 torturados;
10.000 exilados;
130 brasileiros banidos com passaportes cancelados;
10.034 atingidos por inquéritos policiais;
7.367 indiciados;
6.592 punições e desligamentos de militares;
700 mandatos políticos cassados;
1.202 sindicatos sob intervenção do Estado;
254 sindicatos dissolvidos;
49 juízes expurgados;
4 condenados à morte, que foram banidos;
3 ministros do STF afastados.
O legado maldito amplia-se ao levarmos em conta a contabilidade político-social que arrastamos ainda nos dias de hoje: projetos culturais de gerações interrompidos, a devastação do ensino público, o alijamento político de jovens que encaram a vida como um projeto pessoal, a prática da tortura como método de obter informação como o maior legado do qual nossas polícias civil e militar são os legítimos herdeiros.
Para Carlos Eugênio Paz deveríamos discutir o sistema político autoritário como um todo. “Se não tivesse havido tortura, estaria tudo bem? O que importa é a natureza do poder que foi instalado”, questiona. Para o ex-guerrilheiro, a ditadura serviu para formar uma geração esvaziada do “projeto de nação” e centrada em um “projeto individual de carreira”.
Em 2010, o STF rejeitou o pedido da OAB por uma revisão na Lei da Anistia. A Ordem pretendia que o Supremo anulasse o perdão dado aos torturadores no regime militar. O então presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, ungido pelo espírito do algoz, cravou a imortal assertiva: “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”.
Sábio ex-ministro, estariam os torturadores inspirados nesses “mais elevados sentimentos de humanidade” ao praticarem seus crimes?
Infelizmente o Supremo arrefeceu as esperanças de que a Lei da Anistia fosse revista, porém alguns promotores estão encontrando brechas na lei para tentar processar torturadores por crime de sequestro nos casos de presos políticos desaparecidos. Como o corpo de muitos nunca foi encontrado, o argumento é que o crime ainda estaria em andamento. Tal expediente jurídico não teria alcance pela Lei da Anistia. Além disso, organismos internacionais fazem pressão para que o Brasil puna essa velhacaria oficialesca.
A decisão unânime dos membros da Comissão Nacional da Verdade colocou uma pá de cal na pretensão da milicada linha dura, que queria ver incluída na apuração ações de militantes de esquerda que resistiram à ditadura.
“Ora, como anistiar quem nunca foi julgado e punido? Nós, as vítimas, sofremos prisões, torturas, exílios, banimentos, assassinatos e desaparecimentos. E os que provocaram tudo isso merecem o prêmio de uma lei injusta e permanecer imunes e impunes como se nada houvessem feito?”, disse Frei Beto
Enfim. É a primeira coisa que se pode dizer sobre a decisão da Justiça de que na certidão de óbito de Vladimir Herzog deixe de constar a mentirosa informação de suicídio. Já há réus em crimes de morte de presos políticos. O coronel Ustra chupa mais uma da justiça. Sua declaração como torturador foi ratificada em segunda instância. O Grão-tinhoso era comandante do DOI/CODI de SP de 1970 a 74. A Justiça Federal no Pará aceitou as denúncias do Ministério Público Federal sobre dois ex-agentes da ditadura acusados de crimes cometidos durante os combates à guerrilha do Araguaia. O coronel reformado Sebastião “Curió” e o major da reserva Lício Augusto Maciel, o “Doutor Asdrúbal”, também estão na mira da justiça.
Democracia racionada
Enquanto nossa Comissão da Verdade descobre novas atrocidades que a milicada impune cometeu, quatro integrantes do exército argentino foram condenados à prisão perpétua por crimes cometidos durante a época do mata e esfola de lá. Desde 2007, um total de 427 réus – a maioria milicos – foram condenados por violações dos direitos humanos durante o regime militar, segundo a Procuradoria de Crimes Contra a Humanidade da Argentina. Nossa velhacaria oficialesca que prendeu, torturou e assassinou continua jogando biriba no Clube Militar.
E o Congresso do Auriverde Pendão faz teatro com a devolução simbólica do mandato de Jango.
Remoções forçadas , indenizações injustas, falta de transparência e participação popular, desrespeito às leis trabalhistas, legislação de exceção, elitização do espaço urbano, repressão a ambulantes, maquiagem de favelas, truculência policial, remapeamento imobiliário, superfaturamento, indícios de corrupção, leis de segurança, leis de isenção fiscal, leis de restrição territorial, leis de potencial construtivo, lei antiterrorismo, apoio do arbítrio das polícias estaduais, remoções forçadas, federalização da repressão às manifestações… Para fechar o pacote o Ministério da Defesa editou portaria que regula o uso da milicada nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – famigerado termo que especifica situações em que as Forças Armadas poderão atuar como a truculenta poliçada nas manifestações contra a Copa. Esse novo AI da ex-guerrilheria Dilma incluiu os “movimentos ou organizações” na lista de “forças oponentes”, ao lado de “organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e grupos armados”.
O Estado Democrático de Direito ― com balas de borracha no asfalto, fuzilaria na favela e prisões arbitrárias ― está sempre nos lembrando que ele também se funda na violência; reserva, porém, ao dominado uma esquina de resistência dentro da Ordem. Os xerifes federais, estaduais e municipais não são contra manifestantes e favelados. São contra a sua “violência”. Os que se manifestam fora daquela esquina de resistência são violentos. Eis que muitos protestos e favelas saíram do roteiro. Ocuparam esquinas proibidas. Daí surge o Estado de Direito para refrescar nossa memória. Neste momento, ele está na Maré dando um alô pros moradores com o pé em suas portas.