Arquivo do mês: março 2014

A vaca fardada e a democracia racionada


 

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By Mídia Pirata

 

A Vaca Fardada

 

Na manhã do dia 31 de março de 1964, o general Mourão Filho, o “Vaca Fardada”, disparou telefonemas para todo o Brasil, dizendo: “Minhas tropas estão na rua!”.

Na noite do mesmo dia, ordenou que as tropas da IV Divisão de Infantaria que comandava em Juiz de Fora seguissem para ocupar o Estado da Guanabara. As forças do general foram reforçadas por dois outros regimentos golpistas. Seguiram sem resistência e terminaram por se confraternizar no meio do caminho com os milicos do I Exército que haviam partido do Rio de Janeiro com a missão de confrontá-los.

E assim o Vaca Fardada antecipou a quartelada que deixaria o país durante 21 anos nas trevas.

As pesquisas de entidades de Direitos Humanos, dos familiares e ex-presos políticos e de comissões especiais indicam um cenário devastador:

426 mortos e desaparecidos políticos, sendo 30 no exterior, e 70 na repressão

à Guerrilha do Araguaia;

1.118 assassinatos de trabalhadores rurais, 2 mil waimiri-atoari assassinados

por resistirem à construção da BR-174, Manaus-Boa Vista;

centenas de presos comuns exterminados por Esquadrões da Morte;

50.000 prisões arbitrárias;

20.000 torturados;

10.000 exilados;

130 brasileiros banidos com passaportes cancelados;

10.034 atingidos por inquéritos policiais;

7.367 indiciados;

6.592 punições e desligamentos de militares;

700 mandatos políticos cassados;

1.202 sindicatos sob intervenção do Estado;

254 sindicatos dissolvidos;

49 juízes expurgados;

4 condenados à morte, que foram banidos;

3 ministros do STF afastados.

O legado maldito amplia-se ao levarmos em conta a contabilidade político-social que arrastamos ainda nos dias de hoje: projetos culturais de gerações interrompidos, a devastação do ensino público, o alijamento político de jovens que encaram a vida como um projeto pessoal, a prática da tortura como método de obter informação como o maior legado do qual nossas polícias civil e militar são os legítimos herdeiros.

Para Carlos Eugênio Paz deveríamos discutir o sistema político autoritário como um todo. “Se não tivesse havido tortura, estaria tudo bem? O que importa é a natureza do poder que foi instalado”, questiona. Para o ex-guerrilheiro, a ditadura serviu para formar uma geração esvaziada do “projeto de nação” e centrada em um “projeto individual de carreira”.

Em 2010, o STF rejeitou o pedido da OAB por uma revisão na Lei da Anistia. A Ordem pretendia que o Supremo anulasse o perdão dado aos torturadores no regime militar. O então presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, ungido pelo espírito do algoz, cravou a imortal assertiva: “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”.

Sábio ex-ministro, estariam os torturadores inspirados nesses “mais elevados sentimentos de humanidade” ao praticarem seus crimes?

Infelizmente o Supremo arrefeceu as esperanças de que a Lei da Anistia fosse revista, porém alguns promotores estão encontrando brechas na lei para tentar processar torturadores por crime de sequestro nos casos de presos políticos desaparecidos. Como o corpo de muitos nunca foi encontrado, o argumento é que o crime ainda estaria em andamento. Tal expediente jurídico não teria alcance pela Lei da Anistia. Além disso, organismos internacionais fazem pressão para que o Brasil puna essa velhacaria oficialesca.

A decisão unânime dos membros da Comissão Nacional da Verdade colocou uma pá de cal na pretensão da milicada linha dura, que queria ver incluída na apuração ações de militantes de esquerda que resistiram à ditadura.

“Ora, como anistiar quem nunca foi julgado e punido? Nós, as vítimas, sofremos prisões, torturas, exílios, banimentos, assassinatos e desaparecimentos. E os que provocaram tudo isso merecem o prêmio de uma lei injusta e permanecer imunes e impunes como se nada houvessem feito?”, disse Frei Beto

Enfim. É a primeira coisa que se pode dizer sobre a decisão da Justiça de que na certidão de óbito de Vladimir Herzog deixe de constar a mentirosa informação de suicídio.  Já há réus em crimes de morte de presos políticos. O coronel Ustra chupa mais uma da justiça. Sua declaração como torturador foi ratificada em segunda instância. O Grão-tinhoso era comandante do DOI/CODI de SP de 1970 a 74. A Justiça Federal no Pará aceitou as denúncias do Ministério Público Federal sobre dois ex-agentes da ditadura acusados de crimes cometidos durante os combates à guerrilha do Araguaia.  O coronel reformado Sebastião “Curió” e o major da reserva Lício Augusto Maciel, o “Doutor Asdrúbal”, também estão na mira da justiça.

 

 

Democracia racionada

 

Enquanto nossa Comissão da Verdade descobre novas atrocidades que a milicada impune cometeu, quatro integrantes do exército argentino foram condenados à prisão perpétua por crimes cometidos durante a época do mata e esfola de lá. Desde 2007, um total de 427 réus – a maioria milicos – foram condenados por violações dos direitos humanos durante o regime militar, segundo a Procuradoria de Crimes Contra a Humanidade da Argentina. Nossa velhacaria oficialesca que prendeu, torturou e assassinou continua jogando biriba no Clube Militar.
E o Congresso do Auriverde Pendão faz teatro com a devolução simbólica do mandato de Jango.

Remoções forçadas , indenizações injustas, falta de transparência e participação popular, desrespeito às leis trabalhistas, legislação de exceção, elitização do espaço urbano, repressão a ambulantes, maquiagem de favelas, truculência policial, remapeamento imobiliário, superfaturamento, indícios de corrupção, leis de segurança, leis de isenção fiscal, leis de restrição territorial, leis de potencial construtivo, lei antiterrorismo, apoio do arbítrio das polícias estaduais, remoções forçadas, federalização da repressão às manifestações… Para fechar o pacote o Ministério da Defesa editou portaria que regula o uso da milicada nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – famigerado termo que especifica situações em que as Forças Armadas poderão atuar como a truculenta poliçada nas manifestações contra a Copa. Esse novo AI da ex-guerrilheria Dilma incluiu os “movimentos ou organizações” na lista de “forças oponentes”, ao lado de “organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e grupos armados”.

O Estado Democrático de Direito ― com balas de borracha no asfalto, fuzilaria na favela e prisões arbitrárias ― está sempre nos lembrando que ele também se funda  na violência; reserva, porém, ao dominado uma esquina de resistência dentro da Ordem. Os xerifes federais, estaduais e municipais não são contra manifestantes e favelados. São contra a sua “violência”. Os que se manifestam fora daquela esquina de resistência são violentos. Eis que muitos protestos e favelas saíram do roteiro. Ocuparam esquinas proibidas. Daí surge o Estado de Direito para refrescar nossa memória. Neste momento, ele está na Maré dando um alô pros moradores com o pé em suas portas.

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O governo Dilma é BOM! (Precisa desenhar?!)


Desde domingo, nosso blogue tornou-se um muro das lamentações duma série de recalques societários, amargurados e mal resolvidos. Tudo devido ao texto Direita, volver, do companheiro de blogue, camarada de lutas e irmão de utopias Walace Cestari. Nesta semana, por dois dias, fomos o blogue mais visitado do país do wordpress.

Naquele texto, o coblogueiro tratou tão somente de meia dúzia dumas cinco, talvez sete, verdades. Mas, foi o suficiente pra disparar a fúria, paranoia e histeria duma massa que tem em olavos de carvalho, demétrios magnolis, reinaldos azevedos, diogos mainardis, vejas, jornais nacionais et caterva seus faróis. Tudo por conta da vestimenta da carapuça, pra lá de mal resolvida, de “classe média”.

[Repostando aqui essa canção, mas por um bom motivo]

Vestir a fantasia de classe média já é patético, mas crer nela é muito pior, além de perigoso. Afinal, primeiro vem o traje de classe média, depois é o “cidadão de bem”, “os defensores da família”… numa gradação que dá voz e expressão a mais andrajosa, furiosa e violenta fauna de bestas-fera que se pode imaginar. Além, creio até que se possa chegar a um ponto “Além da imaginação…”. Basta que se associe a isso o que foi o governo militar apoiado na “família”, nos “cidadãos de bem”, na tal “classe média” e seus porta-vozes de uma imprensa neutra, séria, investigativa e imparcialíssima, claro. Tantos pais, mães, filhos, filhas assassinados, mutilados, torturados, violentados, em nome da família! Não dá pra esquecer! Nunca!

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Fotos de mortos e “desaparecidos” na odiosa ditadura militar. A imagem ilustra o cd-rom Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Ministério da Educação.

Pra deixar claro… Somos um blogue parcial, tendencioso, contramidiático e sujo (embora tenhamos as noções básicas de higiene e assepsia) e que se fundamenta nas opiniões aqui emitidas (mesmo em textos sobre Robin ou de tom confessional) ! Não temos quaisquer comprometimentos ou pretensões aa mediocridade da fictícia neutralidade. Nos propomos a ser a antítese do senso comum! Daí, TRANSVERSOS!

A opinião isenta deixamos para nossa mídia oficial, tão devotada aa pureza da informação.

Pasmem! Será que vivemos tempos tão acirrados ideologicamente, embora se busque sempre camuflar a ideologização, a ponto de suscitar tantas sandices descontroladas, como temos visto em nosso modesto blogue?! Será que há mesmo um frisson anticomunista?! Ah, como eu queria que ela fosse justificada…

Essa classe média, de todo desclassificada, que crê que exista um estrato social entre ricos e pobres e, pior, ainda se sinta mais próxima do fantasioso “mundo rico” do que da pobreza. Doce  e tola ilusão! Quase uma cega demência! Ora, ver o mundo em ricos e pobres já é ignorar outras compartimentações bem mais precisas: exploradores e explorados, burguesia e proletariado, patrões e empregados… Mas, vá lá, ricos e pobres… que seja. Agora, não enxergar que a tal “classe média” é absurdamente mais próxima da pobretada do que dos mandatários de nossa sociedade. O que explica a obsessiva negação disso (e, por extensão, de toda a óbvia rede de solidariedade social que deveria daí se espraiar)? A mesquinha necessidade de se sentir melhor do que o outro? Trata-se dessa baixeza e vazietude de de vidinhas mesmo?!

A mais persistente moda da dita cuja classe média, como bem sabido e atestado, é a PTfobia! O pretenso Partido dos Trabalhadores seria a razão de todos os males da nação, criador da tristeza! Santa paciência, Batman! Como o mesmo setor que se sente parceiro e consorciado aos elevados gerentes do capital pode ser tão incoerente e, dentro dessa incoerente lógica, tão ingrato. Afinal, as grandes fortunas dirigentes do país sorriem de orelha a orelha com o governo Dilma da Silva. As famílias (ah, o belo valor da família!) Safra, Ermírio de Moraes, Setúbal, dentre outras nunca foram tão pródigas (inclua-se aí os ingratíssimos Marinho). O governo Fernando Henrique era um aprendizinho de feiticeiro, pro sistema financeiro, se comparado ao atual. Por que reclama-se tanto do PT, então? Se se quer identidade com os altos estratos da sociedade, dever-se-ia ovacionar esse governo, que mais do que palmas, merece um Tocantins inteiro, nessa lógica! Pros gestores do capital no país, o governo é, sem dúvida, bom!

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Oposição ideológica, consciente e fundamentada!

Quanto aos setores mais empobrecidos e rastejantes de nossa sociedade, não resta dúvida que, há mais de uma década, se tem tomado iniciativas de combate aa miséria extremada. É verdade que isso não fez com que a alta burguesia tivesse sequer dois fios de cabelo mexidos. Mas, pra quem vive, subterrâneo aa linha de pobreza, qualquer cascalho a mais é cedro, né? “primeiro o estômago, depois o caráter”(?!), como dito por alguém cuja citação serei incapaz de aqui lembrar. Como que, nesses parâmetros, esse governo não é bom, ora?! É fácil pra quem sempre comeu simplesmente apontar tal crítica em discursos vazios ou generalistas, sem qualquer proposição efetiva aa tragédia cotidiana da avassaladora desigualdade brasileira, seja em termos de teorias ou de lutas na sociedade.

Ainda tem o risco, convenhamos, de, em meio a tudo isso, qualquer um poder se sentir classe média daqui a pouco. Não, não dá, né?!

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Esse governo tem tornado o país um “Estados Unidos da América Latina”! Nação reconhecida no continente, praticante de vastas ações (sub)imperialistas junto aas nações vizinhas, com pujantes multinacionais. O Brasil, dizem, tá até na moda, mundo afora. Quem pode dizer que esse governo não é bom? O capital internacional não há de ser.

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Dilma da Silva não é a Juliana Paes, mas é tão boazinha…

Pra quem, afinal, esse governo não é bom? Pra ninguém que importe: um setorzinho de esquerdistas- parece que comunistas, vermelhinhos demais (dizem que citam Marx e tudo!), uma parte não desconsiderável do funcionalismo público, mas ninguém de bem leva a sério esses vagabundos encostados (Ah! E os cursinhos preparatórios pra concursos, salvos pelo governo petista abarrotados…) e pros vândalos baderneiros que, no fundo não passam de uns terroristas praticantes de banditismo oportunista.

É verdade que a mídia caradura, apoiadora da ditadura e de tortura, é permanentemente insatisfeita com o governo: questão de gênese, em ambos os sentidos (família Marinho, cada vez mais bilionária, ingrata). E também há a tal oposição que trafica… ops… trafega pelos ares, em poeirentos helicópteros. Mas, afinal, aves voam…

Um governo capaz de unir em amor e ódio setores tão antagônicos só pode ser bem bom… (no que se propõe).

Enfim, o governo Dilma da Silva é pra lá de bom! Só quem não enxerga isso é a aclamada classe média, imersa em seus sonhos tresloucados de posses!

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P.S.: 65% da população crê que a violência sexual é de responsabilidade das mulheres e de suas roupas (numa pesquisa em que 66% do universo era de mulheres), num país governado por uma mulher?! Pasmem! “É culpa do PT”, diz o cidadão de bem.

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Adeus, tristes


Outra vez acontecem eventos Brasil afora para lembrar a maldita, esta abjeta que como os vampiros fantasmáticos vegeta nas catacumbas com o espírito envolto em trevas de onde sai, de vez em quando, para nos assombrar. São desfiles, palestras, esclarecimentos, lágrimas para os mortos, mais um ritual fúnebre para a dita dura a maldita, a má e maldita dura ditadura, dura, duríssima. Não adianta, saibam os cínicos que mamaram daquele leite fétido, tentar abrandá-la para aliviar suas próprias culpas e as daqueles a quem servem. Digam, a quem servem,desgraçados? Desgraçados no sentido literal da palavra: coisas ruins, incapazes de sentimentos de graça, de gratias, gratuitos. Putos, moleques, inconsequentes, serviçais sem consciência. Servem à mesma ordem que plantou essa semente que nos rasgou o peito e os sonhos. Anos tão desgraçados que a memória quase esgarça mas não leva, não apaga, não lava porque é memória de sangue e sangue mancha, é nódoa eterna o fraterno, destes milhares de filhos e filhas assassinados por aqueles a quem ainda pagamos soldo.

Tropa de covardes-facínoras que mataram a quem deviam proteger, antes forjando – usando perfídia, loucura, crime- a ideia de que eram inimigos, os únicos inimigos que enfrentaram em suas miseráveis carreiras de fracassados soldados. Para isso aprisionaram os verdadeiros valentes que, ao contrário deles, eram honrados e se negaram a colocar suas patentes a serviço da torpeza. Com torpes não compactuam os homens de respeito e soldados covardes só merecem desprezo. Homens valentes jamais torturariam, despedaçariam corpos e almas, estuprariam e esfolariam mulheres e homens desarmados. Coisas como estas são obra de covardes, falsos soldados, guerreiros- engodo.
Traidores. Traidores do Presidente a quem tinham jurado subordinação, traidores da República, traidores da Constituição, faltando à palavra empenhada, aos juramentos prestados, incapazes de honrar a única coisa de que poderiam ter se orgulhado em suas vidas ociosas de botas lustradas, fazendo mesuras e recitando palavras vazias sobre guerras que nunca lutaram. Traidores dos patriotas, dos defensores da nação e dos mais fracos. Traidores-covardes-em-armas apontadas para desarmados camponeses e camponesas que marchavam há décadas pedindo justiça. Há décadas! Pedindo o quê? Ouro para fazer medalhas? Clubes para jogarem cartas, arrotarem grosseria e soltarem flatos? Ladrilhos para suas piscinas, diamantes para suas amantes, carros possantes, casas de praia? Não, traidores, os trabalhadores pediam terra para plantar. Terra para que, comos filhos desta terra (esta terra destes filhos que os traidores tinham jurado defender), pudessem plantar alimentos, pudessem trabalhar. E tanta terra havia, Deo Gratias!, mas preferiram levar Seu nome à lama, onde se lambuzaram como porcos, apupados por galinhas carolas que mal entendiam de bordados, de cacarejar estultícias e explorar a menina na cozinha que limpava também suas fossas.

Traidores. Traíram e traíram de novo, quando faltaram à palavra dada de convocar novas eleições e juntaram-se a bandidos, a descendentes de assassinos de nativos, a fascistas recém-chegados, a ambiciosos sem escrúpulos, a todo o tipo de escória que sempre andaram nestas terras a vadiar, escravizar, estuprar e matar há mais de 500 anos. Todos cheios de posses roubadas, títulos roubados, nomes imundos que mandam escrever em placas. Estes, os seus nobres sócios, seus empolgados apoios!

Traidores. Trazedores de dores. Traíras. Assassinos de pobres desarmados, de padres desarmados, de estudantes desarmados, professores desarmados, jornalistas desarmados, advogados desarmados, assassinos de brasileiros mantidos miseráveis nos cafundós a quem não foram capazes de prover míseras cisternas para que não morressem de sede! Trocando nossas matas por cascatas de mentiras e dólares, mancomunados com águias a quem ofereceram nosso fígado, mastigando nossa carne para dar de comer ao condor, lambendo botas do império para ganhar farelos, maus conselhos, tapinhas nas costas, enquanto o mundo inteiro zombava das suas parvoíces de brutos que de nada entendiam além de pregar a ordem. A ordem, imaginem, a ordem! Babacas cheios de botões de lata posando no espelho, arrotando valentia e entregando o país à agiotagem, para que todos os cafetões se forrassem de dinheiro enquanto o povo se esfalfava para sustentar toda a corja. Batalhão de incompetentes

Queimadores de arquivos, depredadores de memória, nem meio século aplacou nossa dor, ver todas aquelas criancinhas obrigadas a marchar para enaltecer mentecaptos, cercadas de gente grande que tinha medo das suas baionetas e pelas costas os chamavam os burros sustentados por doentes mentais e corruptos. Eis as suas obras, recebam suas homenagens! Corrupção em larga escala, em todos os níveis e modos, genocídios indigenas, atentados terroristas, desemprego, desamparo, falta de teto e pão para a multidão, para uma minoria privilégios, os puxa-sacos que por lamberem os rabos daqueles seus nobres sócios, se punham com o rei na barriga e dá-lhe espora nos de baixo! Parabéns por forjarem esta corporação de homens tolos, cheios de ódio à inteligência que tentam perpetuar sua obra monstruosa, esta máquina simbólica de gerar estupidez que ainda cospe cretinos. Esta obra lhes pertence, não olhem para o outro lado, recebam os seus troféus. Este bando de ruminadores que desprezam história, filosofia, política, mas acreditam em qualquer coisa que lhes diga a tv, são seus, são todos seus, este pelotão de velhos, mesmo jovens, a repetir qualquer lorota que lhes diga qualquer mau caráter que consiga alinhavar palavras fáceis e aduladoras ao seus recalques infantis, é seu, os leve pra casa, e estes também, que se julgam os reis do trololó porque como os seus patrões mandaram, juram que dizer yes e yes, sir sem sotaque e com empáfia,  é o cúmulo da sapiência, são crias suas também, levem pra casa e bom proveito.

São obras suas estas dívidas, esta diversidade de dívidas que pagamos até hoje, assim como pagamos o preço de suas negações e mentiras, porque nem a hombridade de confessar seus crimes estes covardes tiveram. Além de todos os erros deixaram aos que vieram toda a corja que os cercava, todos os abutres que engordaram, deixaram nos chantageando para não berrarmos que era preciso julgá-los, como os outros foram julgados e presos foram e penas cumpriram. Não. Não foi possível julgá-los ou aos seus nobres sócios e saber porque dispensaram do julgamento aquela enormidade de gente. Para melhor executá-los e, fria e covardemente, perseguir quem os amava? Se foram em cinismo mudo e deixaram a mordaça, se foram sem limpar a sujeira que fizeram -os ocultadores de cadáveres- direto para seus lares, sem confessar quantos dedos deceparam para ocultar digitais, sem explicar que derretiam corpos porque nem o sagrado direito dos pais enterrarem seus filhos quiseram ceder a seus conterrâneos. Em algum momento, será que avisaram a seus vizinhos que eram incapazes de ter sentimentos humanitários por quem discordasse de suas ideias?

Espero que findo este ano e os trabalhos de passar a limpo nossa História, possamos dizer adeus a estas criaturas tristes que não valem nem mais uma lágrima. Adeus, facínoras, vão tarde. Que seus nomes sirvam de fardo aos seus, guardaremos apenas os daqueles cujas feitos de bestialidade ajudem-nos a lembrar que a brutalidade feita o Estado faz nascer homens que parecem monstros, demiurgos do desespero, a completa representação da loucura. Os anos tristes que nos impuseram podem ser resumidos no alerta que deixamos aos que não os conheceram:
A Ditadura brasileira fez prosperar os canalhas, fortaleceu nossos piores traços, usina de crimes de todo tipo, deixou rastros de sangue e apodreceu tudo que tocou e infectou. Deixou-nos ainda a tarefa de enterrar, a ela e seus feitos horripilantes, para sempre.

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Nós, os outros e a moral


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Algumas palavras correm o risco de perder o sentido por conta de uma apropriação ideológica horripilante. É o caso de moral, que, tomada pela classe média, abrange, não a noção filosófica amparada no respeito às diversidades de forma a tornar possível a convivência, mas sim noções preestabelecidas que dividam as pessoas em duas classes bastante demarcadas politicamente: nós e os outros.

O primeiro grupo é formado por pessoas que julgam ter aspirações mais elevadas. Compartilham gostos com ares de supremacia valorativa, acreditam na igualdade de oportunidades, na Família, em Deus, nas Marchas e na Lei de Talião. Acorrentam menores a postes ou punem exemplarmente ladrões de shampoo. Gostam de pobres, desde que eles reconheçam que precisam estar nos recintos como a copeira na reunião de executivos. Calada, discreta e prestativa. Bem educada.

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O bar do (será)fim está próximo


Reservatório da Cantareira, indo de recorde negativo em recorde negativo

Reservatório da Cantareira, indo de recorde negativo em recorde negativo

Segundo relatório lançado pela Nasa na semana passada, estamos bem mais perto do cataclismo do que imaginamos. Fora as razões de sempre (clima, água etc.), a agência espacial americana elencou um problema bastante incomum de ser encontrado nessas listas de fim do mundo: a desigualdade social. Isso se deve, segundo o relatório, ao fato de os altos níveis de desigualdade social estarem associados ao consumo insustentável de recursos.

A ciência vem nos alertando, desde no mínimo a década de 1970, para os riscos do aquecimento global e da não renovabilidade dos recursos naturais. O ponto que raramente se frisou (pelo menos não no âmbito do debate exclusivamente ecológico) é a insustentabilidade do próprio modelo, aquele da sociedade de consumo do capitalismo plenamente desenvolvido. Esse modelo, que se fundamenta no crescimento contínuo da economia e do produto dos países (PIB), não prevê os seus próprios limites. Crescimento econômico significa aumento da riqueza, do consumo e do trabalho (ou seja, aumento da própria população). Infelizmente, a natureza nos deu um teto, e esse crescimento contínuo é simplesmente impossível.

Eventos climáticos tornarão a vida mais difícil em todos os aspectos: redução de terras agricultáveis, dificuldades de circulação de alimentos e produtos e diversos outros fatores que aumentarão muito o problema da fome no mundo

Eventos climáticos tornarão a vida mais difícil em todos os aspectos: redução de terras agricultáveis, dificuldades de circulação de alimentos e produtos e diversos outros fatores que aumentarão muito o problema da fome no mundo

A escassez de água já é uma realidade tangível para a maior parte da humanidade (nós, brasileiros, não percebemos isso ainda, pois estamos instalados em cima da maior bacia hidrográfica do mundo). Segundo o mesmo estudo, isso somado ao avanço do aquecimento global acarretará, em poucas décadas, a mortandade em massa dos seres humanos. Primeiro, sucumbirão os mais pobres. Porém, com a diminuição drástica da força de trabalho, em seguida a civilização como a conhecemos desaparecerá.
A completa irracionalidade do sistema em que vivemos pode ser resumida por um exemplo. Há pelo menos dez anos a comunidade científica alerta para a iminência do esgotamento das reservas de gás hélio. Sendo o segundo elemento mais comum do universo, o hélio também é o segundo elemento mais abundante na Terra (a estrutura química do universo é surpreendentemente regular), compondo 8% da nossa atmosfera. No entanto, não há meios de extraí-lo diretamente do ar, e o hélio de que dispomos vem de depósitos naturais encontrados no interior de algumas formações geológicas. Também não há um meio biossintético de reproduzi-lo (como os biocombustíveis podem substituir os combustíveis fósseis, por exemplo). Portanto, trata-se de um recurso não renovável e insubstituível, mas de grande importância para humanidade devido às suas aplicações na indústria, na medicina e na tecnologia. Ele está presente desde a ressonância magnética até a produção de fibra ótica e chips de computador. No entanto, ele tem sido amplamente desperdiçado, pois também serve para encher balões de festa de aniversário. O capitalismo é tão irracional no uso dos recursos que estamos perdendo um elemento inteiro da tabela periódica para uma forma de diversão insipiente. E ainda dizem que basta deixar o mercado agir por si só, que assim se atinge a alocação ótima dos recursos. Ou então, coletivamente, somos uma espécie suicida.

Calcula-se que para beneficiar a humanidade inteira com os padrões de consumo dos norte-americanos, seriam necessárias pelo menos 4,5 Terras, em termos de recursos. Isso, evidentemente, é inviável. Aos 7 bilhões de habitantes, parece que os pesadelos malthusianos se tornaram, após 200 anos, realidade. A partir de agora, trata-se, sim, de fazer escolhas sustentáveis e socialistas. A redução das desigualdades é uma questão de vida ou de morte. Uma redistribuição otimizada e socialmente orientada dos recursos é a única solução para esse beco sem saída planetário. Esse clima de “oba, o botequim tá aberto!” tem que acabar.

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As mortes em séries da classe média brasileira


marcha da família maçon

classe média 2

 

 

 

Não vejo a classe média brasileira como um “judas”. Em um país de tradição escravista a classe média é fruto de migrantes dos “de baixo”, pessoas com origem nas camadas vinculadas às memórias e identidades dos escravos, indígenas perseguidos e brancos pobres e abandonados, ou fruto de migrantes dos “de cima”, pessoas que perderam sua inclusão entre os nobres e decaíram “às galés”. Há quem diga ter a classe média iniciado sua formação no segundo império brasileiro, quando já havia a grande preocupação com a busca pela “modernidade”, palavra da qual derivam todos os ideais alimentados por todas as classes médias da história da humanidade. Dizia Oliveira Vianna, um jurista autoritário pensador do tempo do Estado Novo de Getúlio Vargas, que o Brasil padecia de ter seus brancos cruéis demais, exagerados era o termo, e seus negros servis demais. E, ainda, dizia que o mestiço brasileiro – característica da maioria da população até hoje – era possuidor de um hibridismo de linguagem, intenções e caráter que lhe conferiam uma personalidade ambivalente, difusa, molenga, polimórfica. Digo isso, e não irei adiante, para demarcar um pensamento de que o furo é muito mais embaixo quando vemos uma meia dúzia de bizarros personagens levantarem a bandeira da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, e irem às ruas neste março de 2014 em várias cidades do Brasil.

A tradicional classe média brasileira parece estar morrendo coletivamente e em acontecimentos dramáticos individuais, ou em família, em pequenos grupos ou em aglomerados de tipos sociais – como os servidores públicos por exemplo – não raro em situação de total solidão e deprimente abandono. A família tradicional de classe média está sob pressão de um novo e estranho alargamento das faixas populacionais subalternas e de outro leve e controlado adensamento da minúscula classe superior, detentora dos meios de participação social na condição de ator e não a de mero espectador, plateia, audiência, seguidores da opinião publicada. Eu gostaria de entender o aspecto melancólico dessas manifestações inglórias de uma direita sem poder algum, ou de qualquer coisa representando uma fração das forças policiais. Sabendo que seriam pequenos, destoantes, desengonçados eles foram assim mesmo para as ruas e isso sempre foi um enorme privilégio da esquerda, das feministas, dos anarquistas e de quem tinha moral sobrando para demonstrar sua fragilidade e pequenez. Também no tempo de Getúlio Vargas integralistas disputavam aos tapas e violências banais os espaços nas calçadas, junto a comunistas e socialistas sem poder. Note-se, também no tempo de Vargas havia comunistas e integralistas no poder e entre os “de baixo” e os “de cima”, neste caso, não havia (também) confiança e nem representação. O que marca o momento em que vivemos é a existência de multiplicidades tanto entre os “donos do poder”, como referia o imbatível Raymundo Faoro, quanto entre os subalternos, os zé ninguém. E aí temos classes médias em todos as cores de tribos, exércitos, bandos e religiões, não sendo um atributo próprio da classe média marchar com a família por deus e pela liberdade, até porque cada setor desses dos do meio tem seu próprio deus, seja ele qual velho barbudo ou bigodudo for, ou Marx, ou Nietzsche, ou Stalin, ou Gandhi, ou Jesus em sua figura paterna, e cada qual tem a sua própria concepção do que possa emanar da palavra “liberdade”. Noves fora, zero.

Mas é evidente a redução do espaço social para a cultura tradicional das classes média, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Uns brincam nas mesas de bares comentando o “enchinezamento” do mundo, ou seja, já percebemos que coisas endeusadas pelas classes médias, tais como Declarações de Direitos Humanos e Constituições de Repúblicas estão sendo atropeladas pelos tanques da “celeridade”, da “eficiência” e da “produtividade”, a partir do exemplo chinês, no mundo todo. No Brasil, há várias mortes da classe média em séries de acontecimentos diferentes. Há uma morte coletiva anunciada pelos já famosos rolézinhos, que não obstante sejam coibidos, reprimidos, reconduzidos a um controle, já são um acontecimento terminal do templo da classe média brasileira, o shopping center, que nunca poderia ter sido chamado de “supermercado de lojas”, necessariamente teria que carregar um nome em inglês. Uns dizem que essa morte do shopping se dá porque o dito é um lugar de meditação individual egocêntrica, e o rolézinho aparece à superfície a partir de uma formação migratória da margem, dos periféricos ao sistema de consumo, que se movem por necessidade e tradição em bandos, uma andarilhagem nômade, movimento coletivo.[superfície aqui significa aquilo que é visto por todos, que consegue ser falado por quem controla a circulação de imagens, discursos] Ora, diz essa leitura (veja Paul Virilio ) que a contemplação dos shoppings não é “dromo”, é introspecção individual, mesmo quando ocorre em pequenos grupos de familiares: sempre há o sujeito ego ação, o personagem que está escolhendo a roupa, o objeto, o sorvete, o desejo enfim. E, na classe média brasileira, a escolha é de um sujeito, o que entra na loja, o que diz “aqui”, o que celebra o ritual. O rolézinho é um “todo o mundo” e se aproxima mais do assalto em bando do que da liturgia do recebimento da hóstia, na comunhão católica.
Há várias mortes sobre as quais não falaremos aqui: a morte da música pensada e entendida, a morte da leitura premiada e formadora de hegemonia discursiva, a morte do amor iluminista, e outras tantas mortes, inclusive a morte de um determinado tipo de corpo autônomo. A classe média era, e ainda se mantém, um acontecimento articulador de um espaço público no qual era tecido o cotidiano de um viver republicano, um lugar de direitos comuns dos quais estavam exilados tanto os pobres, por carência de exercício de direitos, quanto os ricos, por terem sua abundância de poder protegida por altos muros. Agora o espaço público está metamorfoseado em espaço de uma guerra civil latente, lugar de circulação de guerreiros, soldados, bandidos, forasteiros. Um lugar já invadido pela ausência de direitos própria dos que antes eram os chamados excluídos e agora são os novos seres do meio, esse lugar sendo já uma enorme parte, ou melhor dizendo, o lugar nomeado como o dos 99% perdedores no sistema capitalista tardio. É por isso, pela perda de importância política da classe média em seus ideais que as ruas começam a ser ocupadas por outras identidades que não a de classe média bem sucedida, os vândalos de todo o tipo, seja de direita ou de esquerda. Ou até mesmo o povo das drogas, por que não incluí-los nesta análise?

É isso. Deixo o debate começar aqui. Só gostaria de finalizar iluminando uma das séries das mortes da classe média brasileira: a morte dos velhos estudados e bem profissionalizados, em geral reacionários, machistas, homofóbicos (mesmo os que praticaram seu homossexualismo clandestino), tradicionalistas e positivistas. Talvez seja pecado dizer, mas os velhos pobres habitam mundos nos quais as comunidades são mais agrupadas em sentimentos de solidariedade e mútua proteção. Eles são muito úteis, não raro, e servem para ajudar com as crianças, com os inválidos, com as limpezas, as rezas, os cultos e bênçãos pagãos. E quando morrem, isso lhes acontece de um modo mais súbito, já que não têm acesso ao atendimento médico e hospitalar de alta qualidade. Já os velhos da tradicional classe média brasileira atual vivem em um mundo no qual a família perdeu o sentido, vivem solitários em apartamentos bem mobiliados e com direito aos melhores hospitais e médicos de plantão. Habitam um mundo onde se dá todo o valor ao corpo ágil e rápido, competitivo e exato, produtivo. Os velhos da classe média não morrem de uma vez, vão morrendo aos poucos desde os cinquenta anos, em meio a toda a cara tecnologia para mantê-los vivos em uma sociedade que despreza a velhice, a memória, a experiência, a lentidão.

Então, resumindo, os velhos da classe média desse país escravista e futeboleiro, das grandes mídias tirânicas, estão chegando aos oitenta anos abandonados desde os sessenta e sem função nenhuma, nem mesmo perante filhos, netos e bisnetos. Eles são aquela velhinha do filme “feio, sujos e malvados” de Ettore Scola, na cadeira de rodas, que os familiares apenas desejam receber a grana da aposentadoria (no caso da nossa classe média, a pequena herança). Eles mesmos, esses velhos, são os jovens que apoiaram o Getúlio Vargas, que cresceram com ele, que reconheceram na Ditadura Militar os jovens tenentes formados na coluna Prestes, aderindo ao milagre econômico da década de 1970. E, mesmo os que odiaram o Lula desde o início, reconheceram na fase sorriso e gravata do ex-dirigente sindical uma possibilidade de continuação do projeto desenvolvimentista e ordenador, que afinal era tudo o que esses agora velhos entenderam, desde quando foram adolescentes em um país de centralização imatura, sempre frágil e fake, imerso desde sempre em coronelismos imortais. Tornaram-se esses velhos um fluxo coletivo de autoritarismo tacanho, moralidade ambivalente e paradoxal e, emersos de um cristianismo ibérico inquisitorial, supreendentemente tornaram-se agnósticos e ateus em conjunto. Uma vitória significativa de um determinado positivismo renitente e tupiniquim.

feios e sujos

Assim, temos, ao lado dos presídios onde se degolam presos mais frágeis, ao lado das escolas onde se mantém crianças e adolescentes contidos e adestrados, ao lado dos trabalhos onde se mantém um gado humano humilhado e sempre classificado como moroso, negligente, desleal, temos – para a classe média brasileira, a verdadeira – hospitais e médicos bem remunerados e procedimentos para prolongar apenas a existência do corpo físico em pé, ou em cadeiras de rodas, ou em camas de geriatrias. Esses velhos, hoje, são chamados pela grande mídia de “melhor idade” e estão tomados por uma demência provocada não apenas pela fragilidade de seus cérebros, mas, sobretudo, pela total ausência de função social deles, tanto material e cultural quanto política, já que eles são conservadores, moralistas e autoritários de um modo fora de moda. Todas as paranoias explodem nessas famílias de classe média verdadeira que a grande mídia se esforça por expulsar do lugar social dos não comentados, blindados e não criticados, o lugar dos âncoras, dos atores famosos, dos grandes jogadores, dos grandes músicos, os que têm iates e BMWs, o que mantém essa antiga classe média como alvo de todas as críticas comportamentais desde a grande mídia até a grande esquerda tradicional, que se detém a tirar a pele com “gilete” dessa subcultura já desnecessária ao projeto neopopulista chinês dos integrantes ( à esquerda e à direita) do bonde “Lula lá”. Assim, desmoralizados, os velhos mortos-vivos, internados em clínicas, estacionados em frente à televisões de última geração ou, finalmente, entubados e suas famílias mergulhadas em múltiplas e criativas psicoses de grupo, ficam meses, às vezes anos, em uma espécie de campo de concentração da nova tecnologia geriátrica, da melhor idade, ocupada em produzir índices de expectativa de vida para futura manipulação.

Havia algo de absurdo nas passeatas da “marcha da família” do mês de março de 2014 no Brasil; havia uma evidente estética de um fracasso, uma paranoia esquálida e decadente. Eram poucas, agoniadas, infelizes e envergonhadas pessoas. Foram acontecimentos por demais bizarros para que deixássemos de nos preocupar com eles. Havia algo de muito preocupante na decrepitude simbólica daquela gente. Talvez eles representassem uma velha direita morrendo para dar lugar a uma nova direita que não se chama assim. Talvez fosse a representação de uma das mortes da classe média de tradição, anunciando um tempo Mad Max e Matrix, sem classes médias.

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Passista das águas


 

 

Image

 

 

passista das águas

 

guia de ogum

pendido ao pescoço,

cheio de simpatias

vaidades mil

mas tua dívida:

ferida aberta

que do sal não se esconde.

 

de tocaia,

olhares de cão

olhinegros

postos nos teus

e sob a imensidão do espaço

o tiro no peito:

todo se prostra

todo se humilha

 

como um sólido

abandonado a si mesmo

precipita-se

em desamparo

no leito do rio busca abrigo

̶ o rio e seu calibre ̶   

a serpente assinala o caminho

das águas monótonas

arrastando consigo a pele negra

que, como uma prece, boia,

tingindo as águas

de um rubor de sangue

 

às margens do estreito corredor,

seres lesmentos,

amantes de lugares úmidos.

o fundo lodoso

imprime ritmo frouxo,

 

no giro de formas e cores,

movimentos jocosos

imergem em voltas e curvas

emergem em torções e voltas.

na sanguínea folia,

arquejante embriaguez.

torna-se patente

o talento acrobático

de tua coreografia

aquático-fantasmagórica.

 

e uma dança de bolhas

pela água danças.

 

sobe e desce

o brinquedo partido,

no pequeno festejo

de chocalhos mudos.

removida a fantasia

que, de sangue e espanto,

se turva.

 

lembranças de eternos carnavais,

cocaínas eternas, mortes sem fim.

peixe preso em rede,

agora espúria máscara

de um quimérico folião te unge.

 

o rio principia ofício litúrgico

dando repouso, quietude, sossego

ao fantasma que consigo leva

um mecanismo mais doce,

digno e indolor

o rio não fôra

uma câmara de suplício,

mas suave eflúvio.

a língua aquosa lambe as feridas

em tranquila solidão.

flutua o balão de carne:

esôfago dilatado

pulmões encharcados.

torna-te parte da paisagem

como fluidos que se misturam.

 

segue o cortejo:

o ritmo ditado pela batida

de um surdo de marcação.

o corpo sem vida boia

dentro dos olhos do rio,

indo para o mar…

o mar e seu

 

teatro de fantoches,

com sua coroa solar cinge o corpo de um futuro de iodo e sal.

do mar o olhar de ágata entre cujas camadas observa-se sensível destaque de cor.

uma água morna e alcalina protege, numa paz de rosto materno.

assim termina o drama silencioso de um corpo solto na amplidão

de marítimas turquesas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Antologia parapoética brasileira, comentada


antologias

Nova vertente de transversismo! A poesia está no ar e no blogue. Há tantos textos eivados do mais puro lirismo que passam despercebidos ou são simplesmente esnobados. É aa parte desses que pretendo me dedicar aqui. Pra isso, reuni algumas pérolas de nosso cancioneiro, em ritmos, influências e sotaques musicais bem distintos e pretendo dar a elas uma análise despretensiosa, mas aa altura do lirismo que, enfim, evocam, inerentemente.

Iniciemos com um épico.

Temporal (Art Popular)

Faz tempo que a gente não é aquele mesmo par
Faz tempo que o tempo não passa
É só você estar aqui
Até parece que adormeceu
O que era noite já amanheceu

Cadê aquele nosso amor
Naquela noite de verão
Agora a chuva é temporal
E todo céu vai desabar

É, até parece que o amor não deu
Até parece que não soube ama..a..a..ar
Você reclama do meu apogeu ( do meu apogeu )
E todo o céu vai desabar..ah ah ah ah ah…
Ah ah ah ah, ai… desabou (Me iludiu)

Ah… que raro deleite, não? Bem, no melhor estilo do analista literário britânico Jack, vamos por partes. A letra da canção inicia-se com um eu lírico desconsolado, lamurioso com o atual estado de seu enlace amoroso, como inequivocamente expresso nos dois versos introdutórios. A esses, segue-se o terceiro verso, com a permanente expressão da angústia humana diante da passagem do tempo. Na sequência, o enigmático quarto verso. A quem pertence o protagonismo do adormecimento? AA figura amada? É uma possibilidade, claro. Mas, como revelará uma possível leitura do refrão não há de ser a única- e eis que antecipamos aí o grande “Enigma do apogeu”, como, afinal, ficou popularizada a referida passagem. Mas, chama atenção também o rebuscado jogo semântico do quinto verso que parece instaurar um contrassenso. Mas, só os parvos que tentam analisar “noite” conotativamente em sentido negativo e “amanhecer”, positivo caem nesse engodo. Aqui a poesia fala mesmo do fim da noite, como momento literal de compartilhamento da cama, ora. Atenção, aa rima entre “adormeceu” e “amanheceu”, padrão rímico a se repetir.
“Cadê aquele nosso amor”? Afastamento acentuado pelo pronome “aquele”, marcando o típico eu lírico sofrido-na merda. Notem que, agora, a chuva, convertida em temporal, deve ser entendida conotativamente. Muita, muita dor.
Ao chegarmos ao refrão, aí sim deparamos com as finas formas poéticas do texto. Aqui o eu lírico abandona sua postura de menininho chorão e parte pro confrontamento com a figura amada em passagens antológicas. Primeiro a rima riquíssima, quase superfaturada e fraudulenta entre “deu” (um verbo), com toda sua vasta polissemia (afinal, “não deu”?) e “apogeu” (um substantivo), de fazer inveja ao príncipe dos poetas, Olavo Bilac. E eis que deparamos com o aflitivo “enigma do apogeu”. Há aqueles que, despeitadamente, afirmam que quem compôs essa letra não sabe o que signifique apogeu, mas isso não passa de maledicência. Assumindo, portanto, que, de fato, a palavra corresponda a “ápice”- afinal, sabe-se lá que jogos sofisticados de sentido podem ter sido feitos com o apogeu- quem essa figura pensa que é? Além de levar o eu lírico ao estado de beicismo intenso, ainda reclama de seu “apogeu”? Ora, que figura mais periclitante será essa?! Isso tudo nos leva aa inevitável pergunta: o que, no fim das contas, terá desabado, após a reclamação injustificável sobre o apogeu desse inconsolável eu lírico?
Agora, voltemos nossas atenções ao consagrado clássico de Cumpadi Washington e Beto Jamaica, poetas não reconhecidos da contemporaneidade.
Dança da cordinha (É o Tchan)

Passa negão
Passa neguinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa negão
Passa loirinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa loirão
Passa loirinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa loirão
Passa neguinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Essa é a nova onda
Que eu vou lhe ensinar
Por debaixo da cordinha
Você vai ter que passar

Remexendo ao som do Tchan, Tchan, Tchan
As meninas e o rapaz
É o bicho da cara preta
Mostrando como é que faz

Passa gordão
Passa magrinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa gordão
Passa magrinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa negão
Passa neguinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa gordão
Passa magrinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Vai, vai, vai
Baixando
Vai, vai, vai
Passando
Vai, vai, vai
Que eu também vou

Essa aí passou!
Essa aí passou!
Essa aí passou!

Vai, vai, vai
Baixando
Vai, vai, vai
Passando
Vai, vai, vai
Que eu também vou

Essa aí passou!
Essa aí passou!
Essa aí passou!

Essa é a nova onda
Que eu vou lhe ensinar
Por debaixo da cordinha
Você vai ter que passar

Remexendo ao som do Tchan, Tchan, Tchan
A menina e o rapaz
É o bicho da cara preta
Mostrando como é que faz

Passa negão
Passa neguinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa negão
Passa neguinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa gordão
Passa gordinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Passa gordão
Passa magrinha
Quero ver você passar
Por debaixo da cordinha

Vai, vai, vai
Baixando
Vai, vai, vai
Passando
Vai, vai, vai
Que eu também vou

Essa aí passou!
Essa aí passou!
Essa aí passou!

Vai, vai, vai
Baixando
Vai, vai, vai
Passando
Vai, vai, vai
Que eu também vou

Essa aí passou!
Essa aí passou!

Aqui, deparamos com uma plena convocação libertária. A cordinha é, antes de tudo, um instrumento e símbolo de nivelamento e equiparação social. Todos passam por ela igualitários: o loirão, o negão, a magrinha e tantos outros. Não há racismo, lipofobia, preconceitos de quaisquer ordens. E aqui salta aos ouvidos a rica intertextualidade com o prestigiado compositor Chico Buarque que cantarolou, em projeção de futuro, “Vai passar”, como antecipação da vindoura alegria popular nas ruas. Pois que os libertários poetas Jamaica e Washington, mais avançados do que Chico, conclamam o momento exato dessa celebração: “Vai, vai, vai… passando”, numa festa de democracia plena, sob os auspícios do “bicho da cara preta”, em plena identificação da efetiva matriz étnica popular brasileira. É a alegria espontânea a cada passada, transfigurada na superfície textual pelo recurso da repetição enfática: “Essa aí passou, essa aí passou, essa aí passou…”. É o Tchan libertando geral! É “a nova onda” de transformação social!

poesia

E, como comprovação de que esta nossa análise estilística se volta aos mais variados, abrangentes e representativos exemplares de nosso cancioneiro, um exemplar representante de nossa MPB.

Táxi Lunar

Ela me deu o seu amor, eu tomei
No dia 16 de maio, viajei
Espaçonave atropelado, procurei
O meu amor aperreado

Apenas apanhei na beira-mar
Um táxi pra estação lunar

Bela linda criatura, bonita
Nem menina, nem mulher
Tem espelho no seu rosto de neve
Nem menina, nem mulher

Apenas apanhei na beira-mar
Um táxi pra estação lunar

Pela sua cabeleira, vermelha
Pelos raios desse sol, lilás
Pelo fogo do seu corpo, centelha
Belos raios desse sol

Apenas apanhei na beira-mar
Um táxi pra estação lunar

Muito já se disse sobre a esfíngica letra da música assinada por Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença. Ora, afinal, o que nossos três grandes prestigiados compositores pretenderam com essa letra? Essa pergunta ecoa há muito, de norte a sul. Por que 16 de maio?! Espaçonave atropelado?! Sol lilás?! E o que a bela linda criatura, nem menina nem mulher tem a ver com o tal táxi pra estação lunar?! Ora, como assim “táxi lunar”?!

Há os que advogam ser essa letra, na verdade, exclusivamente de Zé- bem ao feitio de sua obra- e Geraldinho e Alceu, então, teriam disponibilizado seus nomes em uma época em que o compositor paraibano estaria mal das pernas e da cabeça. Em que pese essa versão ter sustentação na biografia do querido Zé, não nos esclarece de que se trata afinal a poética composição.

Há também aqueles que sugerem uma autêntica manifestação neodadaísta aí. Mas, tal interpretação soa muito simplista e escapa também da análise devida.

Em verdade, apesar das inúmeras teorias interpretativas sobre a letra da canção, trata-se dum ousadíssimo libelo, em plena ditadura militar, pela legalização da maconha, quiçá sabe-se doutras substâncias. Vejam vocês quanto destemor desses compositores. E, afinal, se a censura da ditadura deixava passar o tanto que deixava do Chico Buarque, imaginem “Táxi lunar”, ininterpretável pros toscos censores.

Por fim, elencamos aqui, com a licença do aparentemente antitético neologismo, um verdadeiro neoclássico!

Eguinha Pocotó

Vou mandando um beijinho
Pra filhinha e pra vovó
Só não posso esquecer
Da minha eguinha Pocotó

Pocotó pocotó pocotó pocotó
Minha eguinha pocotó

O jumento e o cavalinho
Eles nunca andam só
Quando sai pra passear
Levam a égua Pocotó

Pocotó pocotó pocotó pocotó
Minha eguinha Pocotó

Um belíssimo exemplo da riqueza e polissemia de nossa cena musical. Pois vejamos… Logo, aa abertura do texto, a simpática eguinha assume, para o eu lírico, a mesma importância da filhinha e da vovó, numa clara referência aos direitos animais ora tão em voga. A simpática Pocotó, então, extravasa o plano meramente onomástico e se torna uma contagiante interjeição com uma carga de sentimentalismo de difícil tradução. Com a entrada em cena do jumento e do cavalinho e  a tematização do cruel risco do flagelo contemporâneo da solidão, temos, diante de nós, um painel idílico. Aqui o apelo a uma vida de tom pastoril é claro e a nossa aclamada Pocotó ocupa aí a surpreendente condição de Musa, tal qual Marília, de Dirceu, numa elevação talvez só vista, em relação aos animais, na caracterização da cadela Baleia, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Eis que a conclamação de ambiência bucólica eclode em nova ênfase interjecional. É uma retomada dos típicos valores da estética árcade em nosso mundinho contemporâneo. Literalmente, como dito, neoclássico!

E você achava que No meio do caminho, de Drummond era um exemplo de texto, recorrentemente, injustiçado, hein?!

Por hoje, é só, pessoal.

Na próxima Antologia parapóetica brasileira, comentada:

– Ragatanga: uma canção satânica?

– Djavan: trilharemos as movediças dunas das composições do alagoano…

E ainda, o axé-marxismo…

P.S.: texto dedicado a meu cumpadi Wellington Silva, que, com certeza, adentrará o espírito das análises aqui empreendidas.

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Altas horas: a vida à beira do caos


couraças
Tô quase dormindo, exausta do dia tenso, corrido. Cheguei em casa e a televisão tava no escuro da favela do Rio. Você tá acordado? Tá tentando achar algo por aqui? Vou lhe dizer uma coisa então:não há mais aquela lógica das coisas que eram “conjuntura” e das coisas que eram “estrutura”. Pra atacar a estrutura era preciso levantar bandeiras idealistas, inexequíveis, contra a família, a propriedade privada, o Estado burguês; para atingir a conjuntura era preciso relatar o que estava acontecendo, no país, na cidade, no estado, na política e na economia, e levantar bandeiras práticas, de curto alcance.Lembro que começávamos os textos assim: “vivemos um momento em que…”. Daí vinham duas consequências: a mediação entre “meios” e “fins” e a mediação entre o desejado e o possível. Isso era pensado dentro de uma ótica linear, de padrão simples, duas dimensões, ou três, no máximo, e dentro de um pensamento Hegeliano evolutivo, como se um Deus, o tal Espírito Absoluto, tendesse ao comunismo e nós pudéssemos apressá-lo, mediante sucessões de táticas corretas: como em um jogo de xadrez. Agora, de repente, as estruturas estão em movimento à beira do caos: dizem os teóricos da Complexidade, que estruturas à beira do caos, de seu desmanchamento, estão no topo de sua criatividade e produzem a máxima potência. Isto é, não há bandeiras práticas para situações meramente conjunturais, derivadas de estruturas sólidas; não há meios de um viés ético e fins de outro, sequer há meios e fins: tudo é finalístico, é preciso arrumar os índices já ou tudo está ameaçado de desmoronar em guerras civis e ditaduras “semiológicas” ou armadas sem peias. Estamos, aos poucos, nos acostumando a ver as características da “guerra” misturadas às características da “normalidade civil”. Diante de tanta incerteza, forma-se um consenso quase químico (na verdade ele é mesmo biológico) de “não se mexa muito pra não fazer marola”, como uma população de algas no mar alto, agarradas à beira de um abismo e em direção ao mar profundo e sem vida: elas ficam juntas, grudadas, agregadas ao solo, firmes, plantadas. A diferença é que somos humanos, temos a capacidade de filosofar, ainda que imóveis e apenas respirando. Podemos pensar e comunicar uns aos outros. Quando dizemos: a estrutura vai cair é porque ela já caiu. O Capital não está seguro – ele ganha pontos de derretimento ora aqui, ora ali, a racionalidade não está segura, vemos multiplicarem-se os pensamentos teológicos, desde os movidos por religiões milenares até os movidos pela mais sofisticadas tecnologia da computação, a sobrevivência está em risco. Nenhuma moral, nenhuma ética está descartada. Os extremos estão disponíveis em igualdade de chances: matar dois terços da humanidade e voltar às tiranias escravistas (ainda que megatecnológicas), rumar para modos teológicos de administração de massas ágrafas controladas por ciborgs e vistas de cima por escolhidos de Deus e habitantes de Olimpos; migrar para uma vida frugal e voltada à cultura e ao respeito à Gaia, com seres humanos mais humanos, muito mais humanos. Em meio a essa “vida à beira do caos” há uma antiga esquerda que só quer manter alguma coisa funcionando, qualquer coisa que pareça “normal”, embora tudo pareça maluco, delirante, e uma nova esquerda dotada de uma nova coragem. Uma direita antiga e comportada, agora bastante assustada e uma direita nova, feroz, cruél. E o povo, como diz o poeta, ahhhh…o povo, o povo. Sinceramente, do fundo do meu coração, eu não sei o que aconteceu em Manguinhos, hoje. Não sei mesmo, e não acredito na televisão. Mas tô torcendo pro povo, o povo de sempre.

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Estação Criméia conexão Madureira: as guerras cínicas


A "vigilância cidadã", vista por Latuff

A “vigilância cidadã”, vista por Latuff

A primeira guerra com cobertura de imprensa foi a Guerra da Criméia, de 1853 a 1856, entre russos e turcos (com apoio francês e inglês). Com as tecnologias recém-inventadas, da fotografia e do telegrafo, pela primeira vez o que acontecia em um front chegava ao conhecimento de populações civis, das próximas às mais distantes do conflito. Tal fato acarretou enormes mudanças de perspectivas em relação ao modo de se ver as guerras. Pela primeira vez, batalhas foram contadas não por militares de alta patente, segundo uma visão erradamente idealizada e épica, permeada por noções de heroísmo. A imagem daquela guerra foi a de feridos sangrando em pocilgas até a morte, e a opinião mundial começou a se sensibilizar com o assunto.

Hoje, eu quero acreditar, passamos por semelhante transformação das sensibilidades motivada por mudanças na tecnologia. Conheci um fotógrafo, durante as manifestações que se iniciaram ano passado, reclamando da redução da renda e da quantidade de trabalho da sua profissão, devido aos celulares com câmera que, segundo ele, “até mendigo tem”. As pessoas comuns, como eu, têm cada vez mais à sua disposição imagens gravadas por outras pessoas comuns, em tempo real ou não. Graças a elas, pudemos testemunhar as cenas de barbárie vindas de Madureira, neste último 16 de março. Digo “graças”, pois espero que este novo fenômeno, que chamarei de “vigilância cidadã”, na falta de um melhor, torne-se um meio cada vez mais eficaz de coação ao terrorismo de Estado que vivemos, especialmente as populações “socialmente vulneráveis”, para usar o eufemismo da moda, no Brasil do amanhecer do século XXI.

Essas tecnologias, tanto na mão dos “midiativistas” quanto nas de simples “passantes”, desmentem versões oficiais, mudam pautas de poderosos grupos de comunicação e forçam “especialistas” a se desculparem em público. Para usar outro termo caro aos nossos tempos, trata-se do “empoderamento” do cidadão, que passou de mero receptáculo da informação, “espectador”, como se dizia, a fornecedor de dados. Essa inaudita fluidez da informação rompeu os antigos monopólios de mídia, tanto nos níveis nacionais quanto internacional.

Voltemos, então, à Criméia dos dias de hoje. Aquela pequena península sempre foi uma questão de vida ou morte para a Rússia, do império dos czares até a atualidade. Além de ser um porto perene, é a saída do país para o Mediterrâneo, via Mar Negro, portanto, uma importantíssima rota de navegação, tanto comercial quanto militar. Vladmir Putin, para além de quaisquer considerações humanas, é um grande estrategista de política internacional. Reergueu a Rússia dos escombros e chutou a bunda das (pre)potências ocidentais que teimavam em humilhar seu país, mesmo no período pós-soviético. Putin é o novo Cardeal Richelieu, ele se guia fundamentalmente pela “razão de Estado”. Para a manutenção / expansão do poder, ele opera em uma lógica para além da moral. Nada é mais perigoso, mas é impossível não simpatizar com as derrotas consecutivas que ele impõe a europeus e americanos neste tedioso mundo pós-guerra fria. Pelo outro lado, é um monstro sem a menor consideração pela vida humana, afinal, mandar o exército invadir uma escola cheia de crianças reféns dentro não é para qualquer um (massacre de Beslan, terminou com mais de 300 mortes, a maioria crianças). Também não se deve esquecer da imensa repressão interna e perseguições a minorias, que se instituem cada vez na Rússia sob o seu comando.

Mas o ponto é que Putin, evidentemente, está se lixando para a população russa da Ucrânia, entretanto, isso não muda o fato de que esta corre riscos bem reais caso o país se torne realmente o primeiro Estado fascista do milênio (a proteção a essa população não é apenas uma desculpa esfarrapada, como foi o caso de Hitler e a Crise dos Sudetos, embora seja conveniente). Na Segunda Guerra, parte dos ucranianos aderiu ao nazismo, contra os russos, e foram derrotados. Esse revanchismo histórico está prestes a vir à tona, e, na verdade, as perseguições a comunistas e a judeus já começaram. E nós sabemos disso tudo graças (em parte, pelo menos) às novas formas de circulação das informações. O monopólio internacional da mídia comprou, como era de se esperar, a versão estadunidense dos eventos, aquela do povo se libertando de um tirano (não que Yanukovich não o fosse), em busca de democracia (se democracia significar ataques a sinagogas e gangsterismo político, então é isso mesmo que anda acontecendo por lá). Curiosidade histórica que na mesma Criméia onde praticamente nasceu o fotojornalismo, talvez agora esteja sendo enterrado o jornalismo tradicional. E felizmente nós temos à nossa disposição uma gama de outros meios para nos informarmos sobre o assunto, alternativos à, digamos, Fox News do Rupert Murdoch.

Agora, americanos e ingleses condenam a intervenção da Rússia no país vizinho, o que é bem enriquecedor vindo desses países, que invadiram o Iraque, por exemplo, em bases que se provaram completamente falsas.

O que aconteceu em Madureira foi terrível. Não há a menor possibilidade de não ficar perturbado com as imagens daquele assassinato. Porém, mais perturbador é saber que não se trata de fato isolado, acidente ou exceção. Trata-se do cotidiano de violência e de exclusão dos direitos mais fundamentais a que a maioria das pessoas está submetida. No planeta. Será que essas imagens bastarão para sacudir a opinião pública, assim como a nascente fotografia o fez em relação às guerras? Pelo menos, nem o pior dos cínicos pode negar agora a catástrofe social do país dos grandes eventos.

Categorias: Sociedade | 2 Comentários

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