Gostaram do título ? A ideia era apelar, confesso, mas sensacionalismo é um recurso muito miserável e mal comecei, desisti. Aviso logo que não vou falar exatamente de adultérios. Pronto. Lá se foram os leitores cornudos raivosos, obcecados pelo lado mais banal do assunto. O leitor livre destas taras, saiba que vou falar, de certa forma, sobre adulterações e traições. Tenha paciência que eu chego lá.
Esta semana foi o aniversário de Simone de Beauvoir, faria 106 anos. Eu a revisito vez ou outra – e sempre com aquele prazer de reencontrar certos amigos que sabemos o que vão dizer mas pedimos conselho mesmo assim. Ela mora na estante onde a deixei ao lado de Virgínia Wolf e gosto de imaginar que na minha ausência elas se visitam, sob o teto de Virgínia, aquele que lhe permitiu virar escritora depois de receber a herança de uma tia ou no Café de Flore. Às vezes posso vê-las dialogar mas nunca me senti no direito de participar ativamente . Mulheres de outros tempos e outras terras devem ter muito a conversar, inclusive sobre o que não é da minha conta. O que eu queria dizer é que na última visita que fiz a Simone me comprometi a escrever mais vezes sobre a condição feminina neste ano que se inicia. Porque será, ela me perguntou, que você escreve tão pouco sobre isso ? A princípio, tentei me defender : sou feminista convicta. Tenho consciência do quanto custou e quantas grandes lutadoras foram necessárias para obter a liberdade que desfruto, inatingível para qualquer das minhas antepassadas. Sei das lutas todas do feminismo. Provoco homens e mulheres a pensarem e agirem de maneira a reconhecer e lutar pela igualdade dos gêneros, no que diz respeito aos direitos e deveres. Vejo e denuncio com horror a escalada do feminicídio. Combato com veemência a exploração descarada dos nossos atributos físicos e do apelo erótico grosseiro ao sexo oposto para a venda de todo o tipo de porcaria. Detesto e debato, sempre que posso, o lado perverso da educação do imaginário de nossa menininhas como “ princesinhas da disney” para mais sonharem com príncipes encantados e castelos cheios de cacarecos do que terem sede de aprender e experimentar a vida como seres humanos completos. Sim, eu acredito que você faz isso tudo aí, ela me disse, mas porque não escreve? Prometi que escreveria para não ter que pensar mais sobre o porquê não escrevia, esse é o real da coisa.
Foi fácil prometer mas duas semanas passadas admiti que não conseguia. Devia intuir. Na virada do ano, pensei homenageá-la citando sua célebre ” ninguém nasce mulher, torna-se” e acabei falando da minha condição de ser humano. Cumprimentei meus amigos com a variação “ Ninguém nasce ser humano, torna-se um”. Acho que ela vai aprovar porque certa vez disse que o “homem é considerado ser humano mas a mulher é vista como fêmea e quando ela se comporta como ser humano, a acusam de imitá-lo”. Resumo de um beco sem saída. Muita coisa mudou desde então ? Em muitos lugares do mundo, sim, em outros avançamos, em alguns regredimos. E o próprio feminismo se desdobrou em questionamentos sobre si mesmo, a ponto de se falar em beco sem saída para ele.
A real é que me senti encalacrada, Simone, sem saber o que escolher entre as tantas pautas que o Brasil oferece. Me recuso a promover a funkeira popozuda ao rol dos assuntos feministas como andaram a fazer por aí. Também não vou fazer papel de pedra pois, francamente, com tanto tubarão levando vantagem em cima das nossas bundas avantajadas , Vanessa, para mim, é peixe pequeno. É só mais uma representante comercial desses produtos falsificados que se vende nos shoppings das liberdades ilusórias. Faz seu pregão, como todos, anunciando variações do mesmo goze mais, goze melhor . Quer o quê freguês ? Tem drogas proibidas e liberadas, jogos de sempre e jogos de ocasião, agradam o empregado e o patrão, pano e silicone para o olhar, movimento e emoção pros quadris, distraiam-se, distraiam-se que a vida é curta, é só chegar freguês, na minha mão é mais barato – é ralo mas entretêm. Também não vou falar da polêmica do top less na praia de Copacabana, onde tinha mais câmeras fotográficas do que mamas de fora, mais xingamento do que discussão do que significaria liberar esta prática banal nas praias do país do carnaval. Falar o quê desta surreal constatação de que em poucos dias irão desfilar pelas ruas da cidade completamente peladas e serão incensadas e elogiadas como expressão máxima do melhor e da melhor “ mulher brasileira” ? Preguiça. Mas acho que o que me pega mesmo, Simone, é a quantidade de assassinatos de mulheres por seus ex-maridos e namorados e amantes, moda de todos os verões. Eu estava era com vergonha de descer tão baixo para falar do ser humano do gênero feminino. Porque aqui no Brasil, minha cara, a gente encontra sim os mesmos mecanismos que forjam a opressão da mulher que sua obra descreve. Mas o negócio é que a lama que embrulha isso é densa. Densa e fedorenta. Tem de ter estômago para pescar alguma coisa concreta debaixo dela. Eu vou tentar, só porque prometi a você.
Descobri, zapeando a TV numa destas noites quentes de fazer perder a dignidade, um programa de auditório. O roteiro era o seguinte. Uma mulher escrevia para a produção pedindo que seu marido passasse por um “teste de fidelidade”. Os tais “ profissionais” então, contratam “ atrizes profissionais” que vão sob algum pretexto, atrair o tal marido para um encontro sexual. Digo o tal marido porque nem sei se é tudo ficção sendo todos que participam meros contratados do espetáculo, mas pouco importa. O fato é que neste dia o tal marido encontrava-se com duas mulheres. Pouca nudez no quadro, muita sugestão e, no meio da sacanagem, uma delas confessa ser transsexual. Tudo isto é acompanhado por um monitor no palco, com o apresentador interrompendo minuto a minuto para zombar e atiçar a plateia a escrachar a mulher do cara. Muitos gritos de corna depois, a mulher decide se oferecer ao primeiro que queira beijá-la. Vem o voluntário que ela apontou entre os muitos que se ofereceram. Trocaram um selinho de tal modo ligeiro que faria o beijo lésbico da Madona parecer sexo explícito. O marido, por sua vez, visto pela tela não perde a empolgação e acaricia a tal atriz, sem titubear diante da declaração de que ela no passado foi menino ( sic). Muito gritaria da plateia depois, as atrizes revelam ao homem a farsa. A mulher pede a presença dele, ele topa vir ao palco. Ele é trazido ao palco, arremessa o ramo de flores sobre a mulher e se atira furioso sobre quem roçou seus lábios nos dela. Seguranças o impedem de alcança-lo mas não o agarram, deixam que continue a tentar atingir o apresentador, o beijado, a mulher, A plateia solta urros de prazer e alterna gargalhadas com coros de corno, viado e coisas do gênero. Entram as atrizes. A plateia vai a loucura. O homem diz à mulher que ela não é nada perto das atrizes, se aproxima de uma delas, quase a abraça, diz à mulher que ela é baixinha e feia, enfatiza as curvas e atributos das atrizes. A mulher diz ao marido que elas nunca vão querer ficar com um pobretão como ele. A plateia urra que a transexual não é mulher e que o homem é viado. O apresentador agora resolve portar-se como uma caricatura de diretor de escola e exige respeito com a visita. A transsexual, um bocado nervosa, cospe rapidamente seu recado de profissionalismo, orgulho próprio e “necessidade de combate ao preconceito”. Não sei se é o calor, a taça de vinho gelado, o náusea que sinto ou tudo junto que faz a minha sala girar. Agarro o controle remoto mas quero resistir, assistir até o fim, entender o roteiro completo desta arena romana. Não consegui. Alguma parte da minha humanidade falou mais alto e desliguei o aparelho, usando a potência que a Presidenta disse que é a que nos cabe neste latifúndio da comunicação de massa. A culpa foi minha, Presidenta, eu sei. Sendo, como sou, uma obcecada pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, não devia sintonizar canais abertos. Eu não preciso então porquê vejo ? Eu assisto de vez em quando para ver se eles ficaram menos ruins, menos porcos, menos selvagens. Mas só pioram.
Eu queria muito que você falasse com a Presidenta, Simone, quem sabe você pudesse fazê-la entender do poder do imaginário vendido pelos meios de comunicação de massa na formação do pensamento e da identidade de uma nação como a nossa. Talvez você possa esclarecê-la que há milhões e milhões de homens e mulheres e jovens e crianças que consomem por horas, todos os dias, este tipo de programação. Lembrar que os que menos podem acessar a internet e ler livros são os que passam mais tempo na frente da TV. Por falta de opção, por hábito, por preguiça, porque as noites são quentes, porque não há tantos canais assim à disposição, porque o adultério é um assunto que mexe com as pessoas, com seus sentimentos, instintos, então vai lá saber como é que “ os outros” passam por isso. E então eles vêm que ser selvagem é legítimo e neste ponto complexo de seus instintos e emoções reside alguma espécie de honra masculina e patriarcal que as mulheres querem imitar mas não conseguem. Todas as TVs ruins do mundo fazem coisas deste tipo. Mas só a nossa o faz em português, com brasileiros e para os muitos dos nossos conterrâneos que não conseguem ler legendas.
Eu nem sei se ela já não sabe tudo isso, sinceramente. A única declaração pública que ouvi dela sobre o assunto foi que o “ controle da TV é o controle remoto”. Pode ter sido só uma declaração infeliz num mau dia. Mas também pode ter sido dita para tranquilizar os donos das concessões, estes mesmos que não têm a menor responsabilidade sobre o tipo de programação que exibem porque as ganharam em conchavos e negociações escusas, há muitos anos e têm compromissos apenas com seus doadores ou nem com eles. Isto quando elas não são só um meio para eles manterem ou escalarem cargos políticos, porque os cofres públicos é outro filão que desejam explorar até o osso. Há cornos de todos os sexos que só se importam com dinheiro. Eles não se importam nem um pouco com as imagens, ideias e carniça que vão atirar para alimentar a imaginação, a compreensão do que é “normal”, os hábitos que parecem ser “ normais-porque-passam-na-televisão” de seu público. Que até poderiam passar na TV, desde que não fosse só isso, sempre as mesmíssimas porcarias de músicas, dramaturgia e restrição de acesso à imensa diversidade da produção cultural brasileira. Eu sei muito bem que eles sequer deixam o assunto da democratização da mídia ser discutido nestes mesmos canais que são concessões públicas, repito, porque sabem que estão completamente fora da lei. Fora do que diz a Constituição – que não permite a concentração econômica desses meios na mão de meia dúzia de empresas-famílias. E se eles estão fora do que diz a Constituição e não estão nem aí para sua responsabilidade social como 4º poder, o que é que custaria se juntarem para tentar derrubar a Presidenta ? A presidenta pode estar sob o domínio deles neste assunto, Simone, saiba disso. Não estaria sozinha.
Não vou querer ensinar o parto à parteira mas às vezes penso que você ampliaria sua não-pequena obra tivesse visto a situação da mulher brasileira. Porque se é verdade que no Brasil se reproduz toda mazela da sociedade patriarcal que você descreve, é fato também que somos quase a maioria das chefes de família, sem a figura masculina dentro de casa, com todas as responsabilidades econômicas decorrentes. E ainda: ganhando menos que os homens e estudando mais e trabalhando mais. Isto tudo sujeitas a sermos estupradas, agredidas e insultadas corriqueiramente pelos brutamontes todos.
Conto um pouco mais do nosso drama, Simone. Há muito tempo não vejo telenovelas (adoramos telenovelas), tempos atrás as vi para uma breve pesquisa sobre os temas mais explorados por nossa dramaturgia e aquilo que é chamado plot pelos especialistas. Adivinha ? Sim, adultério , o campeão , em todos os horários. Mais ou menos explícito com muita ou pouca roupa. Saiba também que duplas de vilãs fazem enorme sucesso e são reeditadas sempre. Uma mais pérfida que a outra, uma mais fútil do que a outra, uma mais disposta a qualquer coisa para ficar mais rica do que a outra. Parece que é muito comum o conflito dramático girar em torno de traições e traições sobre traições, adultérios, muitos adultérios. Soube que cenas de ataques físicos ou verbais entre elas dão picos de audiência. Dizem que é divertido, muitas mulheres dizem que é divertido. Eu não sei me divertir com isso.
Eu sei muito bem que você não dava bola para a monogamia, Simone, e não escondeu os ciúmes que a espetaram na vida privada. Tenho ideias bem alinhadas com as suas neste particular. Então me diga : como é que se pode enfrentar a gravidez na adolescência no Brasil, quando é que se vai admitir que casamento monogâmico e heterossexual não é indispensável para a ordem social e nunca foi o arranjo mais comum no Brasil, que ser mãe pode ser o máximo a que um ser humano do gênero feminino pode aspirar como realização pessoal mas que as condições concretas de seu exercício massacram as nossas mulheres. Sem prejuízo de aparecermos na TV como fêmeas estereotipadas, fúteis e possessivas, descontroladas como cães raivosos, interesseiras como mascates , vaidosíssimas e ignorantes como apresentadoras de programas diurnos, arrogantes como funkeiras ambiciosas, mocinhas tolas que passam a vida a caçar namorados e maridos. Por aqui não falta quem diga que isto é a ficção, que a ficção depende de personagens femininas rasas e caricatas, como se só houvessem ignorantes entre nós. Nós, as mulheres reais, vamos por aí, sendo julgadas e insultadas pela nossa aparência, sejam decorrentes da idade, cor ou preferência por vestimentas, Simone, também porque muito poucas de nós podem se equiparar à aparência delas e elas parecem estar em toda a parte, mas não estão na vida concreta, real dos nossos muitos becos, vilas e favelas. Nas bocas de dentes falhados de qualquer botequim da pátria talvez você se horrorizasse ao ouvir homens barrigudos falarem sobre a carne apetitosa exibida na tela e a carne de segunda ou quinta que o espera em casa. Por isso também moças se convencem a arriscar a vida em macas de açougueiros para tentar adulterar a natureza dos seus corpos. O grosso da imagem da mulher na TV brasileira, cara Simone, é trabalhada com anúncios publicitários para um país imaginário que a sociedade tenta reproduzir. E neste país há um desfile interminável de dublês de atrizes de filme pornô. Tentativas de imagens- cover das grandes fêmeas da grande máquina de roliúdi. Simulacros e adulterações de todo tipo. Como quando exibiram mulheres negras de costas, apresentadas por uma mulher negra, para que se escolhesse, como em um hediondo mercado de carne humana, as nádegas mais apetecíveis.
Enquanto isso, as mulheres reais morrem pela mão de homens que, como aquele encenado pela TV, desejariam esmurrar a mulher que encostou os lábios nos de outro homem mesmo que em momento anterior ele estivesse disposto a copular com duas outras mulheres. Enquanto isso é apresentado na televisão como mais alto e melhor objetivo na vida fazer sucesso, ser célebre de qualquer maneira , nesta mesma televisão. E isto tudo é visto também por menininhas muito pequenas, Simone, em lugares onde o saneamento básico não chegou mas chegou a TV colorida, onde não há praças de esportes para elas e a TV se dá muito bem , onde não há locais seguros para recreação porque há tráfico de drogas, a TV reina soberana. E onde traficantes se dão bem, andam em carros possantes e compram tudo que o dinheiro pode comprar, eles são também a tradução possível daqueles príncipes encantados que vendem às meninas. E em muitos lugares, Simone, as mães destas meninas, na tentativa de subtraí-las a estas influências e à visão encantatória destas imagens, as arrastam para igrejas onde vão ser doutrinadas a pensar e se comportarem como mulheres do século XIX, ainda que usem roupas e cabelos da moda atual para que estejam também disponíveis ao mercantilismo mais descarado. Você escreveria sobre tudo isso, Simone ? Aposto que sim mas eu não consigo.
Não sei se vou conseguir cumprir a promessa de voltar mais vezes ao assunto da condição feminina no Brasil. Porque experimento algo tão repulsivo com o que vejo que mal começo a pensar no assunto a clareza se dissolve em uma indignação raivosa. Dá vontade de mandar às favas a civilidade e dizer insultos ao vento. Insultar qualquer um, por qualquer motivo é um hábito bem consagrado no Brasil mas usar o gênero feminino para isto até rendeu um crônica do Duvivier esta semana. Este título é também um convite a que os homens relaxem quando forem chamados de cornos. Num país machista como o nosso, suas mães, irmãs, companheiras, filhas e amigas, mais cedo ou mais tarde, serão chamadas de putas. E qualquer estrangeiro que as veja pelo olhar da nossa televisão vai pensar que somos todos, no mínimo, uns idiotas. Ser corno é o de menos.