Arquivo do mês: janeiro 2014

Se meu fusca falasse


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Nesse período de férias de filha, tenho tido pouco tempo para me dedicar a escrever para o blog. Além de não ter podido dar maiores acabamentos aos textos, tive que optar pela solução fácil de comentar o assunto da semana, sem maiores análises e me prendendo aos fatos como inferidos a partir da imprensa e das redes sociais. Então, vamos às notícias.

Tivemos esses últimos dias a miserável oportunidade de sermos expostos a mais situações estarrecedoras. Refiro-me particularmente, hoje, ao incêndio do fusca na praça Roosevelt, em São Paulo. Não há a menor dúvida de que as imagens daquele carro em chamas, do desespero da família e da criança em choque sendo retirada do veículo são impactantes, do tipo de gerar comoção pública. Porém, há duas versões claramente antagônicas sobre o que aconteceu, de fato, para gerar tão triste incidente. Tentarei resumir as duas versões e, a partir delas, apresentar a minha, uma terceira.

Versão 1 (dos meios de comunicação tradicionais). Na capa do Globo, uma foto enorme e um título apelativo indicavam claramente que os manifestantes haviam incendiado DELIBERADAMENTE o carro. As reportagens dessa linha tiveram uma circulação incrível e já se prevê retaliações aos manifestantes em função das mesmas. Na sequencia, o dono do veículo, um serralheiro ironicamente chamado Itamar (lembram-se do “projeto fuscredo” do falecido presidente Itamar Franco), recebeu atenção dos meios de comunicação, deu várias entrevistas e está, felizmente, creio eu, recebendo solidariedade, via redes sociais, para que compre um novo carro (com o qual, diga-se de passagem, ele ganhava a vida).

Versão 2 (das redes sociais). O serralheiro avançou sobre um colchão em chamas, ao tenta ultrapassar uma barricada, seu carro pegou fogo e os manifestantes ajudaram a socorrê-lo, salvando assim a sua vida e de sua família. Após os fatos, ele, oportunisticamente, passou a dar entrevistas condenando os manifestantes, fazendo o jogo dos veículos de comunicação, o que levou, inclusive, algumas das páginas que se disponibilizaram a arrecadar dinheiro para o novo carro a retirar o apoio.

Por que, com ressalvas, fico com a versão 2. Certas imagens não mentem. O vídeo a baixo é muito esclarecedor:

 

O que se vê é realmente impressionante. No primeiro momento, um (não vários, como dito) manifestante ateia fogo em um colchão. Em seguida, o carro desvia dos manifestantes e passa DELIBERADAMENTE sobre o fogo. Apesar das chamas não estarem altas, um pedaço do colchão engancha em algo em baixo do carro (li que seria no cano de descarga). Na sequencia, que aparece em outros vídeos (http://www.youtube.com/watch?v=sdknRvN6TbQ, por exemplo), as chamas se espalham rápido, o motorista é obrigado a parar e manifestantes e jornalistas ajudam a resgatar sua família.

O maior problema da versão 1 é que ela mesma se desmente. É um velho truque sujo midiático colocar em destaque na primeira página (que tem obviamente a maior visibilidade do jornal) insinuações ou até mesmo acusações que depois são desmentidas no interior do próprio jornal. À afirmação categórica de que os manifestantes atearam fogo no carro, o que se seguiram foram afirmações vagas e propositalmente ambíguas, como esta retirada diretamente do R7 Notícias: “De acordo com o serralheiro, usando lenços pretos para cobrir os rostos, os integrantes do grupo estavam colocando fogo em colchões para interceptar a via e podem ter jogado um dos colchões no carro”.

Esse “pode ter”, semanticamente, exime a mídia de fazer falsas acusações, ao mesmo tempo em que passa para a frente a sua ideia central, melhor exposta nas capas e matérias de primeira hora: da criminalização, passaram à “monstrualização” dos manifestantes. De “vândalos e baderneiros” que atacam pobres bancos sem defesa, eles passaram a “monstros” capazes de queimar pessoas vivas.

E as consequências disso não tardaram. No mesmo dia, não sei se já em decorrência disso, ocorreu uma tentativa de linchamento a um suposto Black Bloc (os bodes expiatórios de todos os pecados do mundo, atualmente):

Pelas razoes expostas na introdução desse texto, não pude nem verificar de quando é esse vídeo, mas os meigos comentários que o seguem, são de poucos dias. Um show de ferocidade e “macheza” de internet, sem dúvida. São falas do tipo “mata! mata!”, como a que segue: “MARAVILHA!!!! Mas BATERAM POUCO! Tem que meter PORRADA NESTES BOSTAS MESMO! PAU NOS BLACK BOSTAS!”

O incidente do fusca em chamas atendeu aos propósitos de todos os opositores dos protestos, populares e legítimos, dos últimos meses, tanto à “esquerda” quanto à direita. Só que, neste último episódio, de maneira mais criminosa. Via a desumanização do inimigo (quem pode ter pena de pessoas capazes de queimar crianças?), estão insuflando reações cada vez mais violentas contra os manifestantes. E isso é criminoso, irresponsável e inadmissível. Fizeram isso uma vez na Alemanha, e deu no que deu (reconheço o exagero da comparação).

Finalmente, à “esquerda”, tenho tido a infelicidade de ler coisas como “manifestação de playboy dá nisso, atacam o trabalhador”. Manifestação de playboy é dose. Vá ao menos para a rua para ver o que está acontecendo. Vivemos em um país racista em que a pobreza tem claramente um recorte racial. É só ver a cor das pessoas, não precisa mais. Assim como acho curioso que a grande imprensa brasileira, altamente comprometida com as classes dominantes, promotora dos seus pontos de vista, do seu modo vida e, digamo-lo de uma vez, da sua ideologia, de repente pareça tão interessada pela sorte de um humilde serralheiro; acho engraçado partidos que se dizem os mais legítimos defensores da classe trabalhadora, nos quais os trabalhadores estão notória e cronicamente sub-representados, fazerem afirmações tão eloquentes contra movimentos de massa realmente representativos. Parece que alguém está perdendo o trem da história. E não é quem está nas ruas, a não ser que a “classe trabalhadora” aja por procuração.

Itamar não é um oportunista (embora talvez tenha-se deixado seduzir pelo encanto dos holofotes), é uma vítima. Seu carro passou no fogo cruzado entre manifestantes, que são sistematicamente espancados e presos por uma polícia facínora a mando de políticos idem, e que, portanto, têm o direito de se rebelar e de se defender, e o Estado brasileiro, acostumado ao autoritarismo, afeito a regalias, à falta de transparência e totalmente incapaz de pelo menos tentar soluções não violentas para lidar com a insatisfação social. Lembremos que, em relação a um Estado assim, o direito de rebelião não foi defendido por Marx ou Proudhon, mas, antes, pelos próprios pais fundadores da democracia, como Thomas Jefferson, por exemplo.

 

 

 

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Da série : tantas vidas vivendo por aí


Na porta da padaria o aposentado de chinelos zomba do vizinho apressado a caminho da Faculdade de Direito. Esse cara é maluco, ele diz. Peço que explique o que quer dizer maluco neste caso. Um cara nesta idade passar tanto tempo quebrando a cabeça , e tem mais, nem precisa de dinheiro. Dá uma cuspida discreta na calçada. Mas pode ser que estudar lhe dê prazer, pondero. Estudar é chato pra caralho, ele me informa. Desafio. Não acho, é das coisas que mais me dá prazer. Ele me olha de esguelha e sacode a cabeça. Você é mais maluca que ele, conclui, lavrando a sentença definitiva sem direito a contraditório. Você morre e fica tudo aí. O tribunal da sua consciência é infalível.  Atravesso a rua e volto às minhas maluquices. Para escapar da sentença de juiz tão implacável, quantos advogados seriam necessários?

Essa outra Simone é jovem, negra, quase franzina e mora na rua. Me aborda na mesma avenida onde, há poucos dias, encontraram o corpo daquele outro. Kaique, jovem, negro, sorriso largo, morador do centro da cidade onde estudava e trabalhava num lava-rápido. Ela exibe cicatrizes. Caíque está morto, estava machucado e perdeu os dentes. Suspeita-se que tenha sido executado por quem odiava seus amores mas a versão oficial é que foi levado por um coração partido a desistir da vida. Simone foi levada às ruas pela cachaça e diz que não se importa de morrer por ela. Eu gosto da pinga, ela diz. Lamento não ter dinheiro para lhe pagar uma mas ofereço um farelo de atenção.  Ela aceita mais do que depressa e narra fragmentos da sua história de coração partido, da infidelidade de uma mulher que amou e ainda ama. Depois fala de um filho que declara não gostar dela e me pergunta: isso é possível ? um filho não amar sua mãe ? Digo que sim, pode acontecer, a vida é complicada e o amor é só uma palavra para nomear uma coisa que todo mundo quer mas ninguém ensina como conseguir. Ela concorda e me sinto à vontade para ir em frente com minha filosofia de botequim. Nem todo mundo sabe dar, recebemos de quem não esperamos, daqueles que esperamos às vezes vem o contrário. Amor é só uma palavra, difícil de dizer, mais difícil ainda de viver. O problema é a raiva, ela me diz, mostrando as cicatrizes nos braços. Quando a dor aqui dentro é muito grande, eu faço doer o corpo porque alivia, e mostra a falta de alguns dentes. Acredita que eu mesmo arranquei, de raiva? Assombrada pela coincidência mórbida e pela revelação acredito. Pergunto se ela perdeu o amor aos dentes e por isso quis jogá-los fora. Ela faz cara de dor. Especulo que talvez tenha ainda algum amor perdido dentro dela mesma, precisando de ajuda para ser encontrado. Me encara, atenta. Passo a falar de centros de ajuda, pergunto se ouviu falar do projeto na Cracolândia, explico onde está a tenda azul, falo de agentes de saúde, de cama, comida, banho, porque não tenta encontrar ajuda, garanto-lhe que não dá pra encontrar amor no mundo se a gente já não tiver um pouquinho dele dentro da gente. Ela faz cara de choro, desvia o olhar, volta a me encarar, abraça o próprio corpo com força, parece querer ocupar menos lugar no espaço mas súbito afirma que vai procurar a tenda azul na Cracolândia, que vai tentar conseguir ajuda. Depois me encara suavemente e parte apressada após uma declaração misteriosa: além de tudo, a senhora é elegante. Sei que é muito difícil ter nascido qualquer coisa desta troca de migalhas de tempo e palavras. Fiquei pensando que Simone perdeu a capacidade de obter amor mas ainda sabe dizer palavras amáveis. E além de tudo, habitamos esta bendita língua pátria na qual o amor rima, tantas vezes, com dor.

Quando tinha 10 anos, se pudesse, compraria todos os livros das suas séries americanas prediletas de best sellers e comeria sorvete sempre que tivesse vontade. Mas tinha vindo ao mundo no papel de filha de trabalhadores pobres: o roteiro mandava era estudar sem reclamar e se esforçar, se esforçar e estudar, mais, sempre mais, mais que todo mundo, superar a preguiça, superar qualquer dúvida, tristeza, cansaço, superar a si mesma, superar os outros. Agora os pais andam com o orçamento mais folgado e além de um extra para o lanche, ganha sapatos da marca z, a camiseta Y, as calças  x  para que não fique para trás na corrida de superação, para que possa superar os colegas que não têm nada disso. Eu mereço, ela diz. Quando crescer quer ter orgulho de ter se esforçado sempre para alcançar esta felicidade que vai ter quando tiver superado esta fase. Mas isso são apenas planos para o futuro. No presente, detesta mesmo é quem se faz de coitadinho e gostaria que os superados por ela não fossem tão invejosos. Recalcados, sabe como é ?    Imagem

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Veja como somos fascistas (ou “vamos dar um rolezinho?”)


 

O truque mais esperto do diabo é nos convencer de que ele não existe

– Charles Baudelaire

 

Contrariando todas as recomendações do meu homeopata, que me pede para evitar aborrecimentos a qualquer custo devido à minha já exacerbada irritabilidade e propensão ao enfarte, ao AVC e ao surto psicótico, fui ler a reportagem da revista (in)Veja sobre os rolezinhos. Vou precisar triplicar a minha ração de bolinhas brancas de açúcar para garantir o efeito placebo pelo menos pelos próximos seis meses, mas aqui vai o resultado desta minha última incursão pelo “cérebro” da direita nacional.

Em nítida mudança de direção, a revista criou (no sentido bem criativo mesmo) uma matéria que, ao invés de tentar criminalizar o rolezinho, como era de se esperar,  tratou de despolitizá-lo e desqualificá-lo como uma espécie de (não) movimento neorretardado-mental praticado por uma juventude pobre ávida por consumo. Reduziram os novos protestos em shopping a uma mera busca por roupas de marca e diversão decalcada dos moldes da classe média paulistana falida. Enfim, criaram personagens caricatos para esvaziar o rolezinho de qualquer consequência e caracterizá-lo como uma questão de insensatez juvenil e revolta bobalhona contra figuras de autoridade.

Ora, não é possível subestimar o fascínio exercido pela sociedade de consumo, especialmente sobre os jovens, sejam eles de periferia ou não. É certo que todos os seres humanos, em medidas bem gerais, querem as mesmas coisas: bem-estar e obter a sua parte de satisfação da sociedade em que cada um está inserido. No quesito geração de satisfação, o capitalismo mostrou-se sempre demoniacamente mais eficiente em mobilizar os desejos das pessoas do que qualquer outra alternativa de modus vivendi.

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Porém, mesmo não sendo possível desvincular a questão do consumo do rolezinho, é claro que há uma relação entre ele e os protestos do ano passado. Estão todos inseridos no mesmo ciclo de empoderamento popular, de redescoberta da reivindicação por ampliação dos direitos e de retomada do espaço público para a manifestação dessas reivindicações. Também, ao contrário do que a Veja sustenta, não são os movimentos sociais que estão tentando engrupir o rolezinho, e sim o rolezinho que surgiu “de carona” nas ondas de protestos que inflamaram o país nos últimos oito meses.

Não existe uma “verdade” sobre o rolezinho, mas é possível descrevê-lo em suas linhas de força, sem cair nos erros das “análises” dos “pitacólogos”, que tanto à esquerda quanto à direita parecem igualmente perdidos. Foi um movimento surgido espontaneamente, sem ter pauta ou direção precisas e vindo diretamente da chamada periferia. Confere. Rapidamente se alastrou graças às redes sociais. Confere. No entanto, ele não se difundiu apenas graças a estas últimas, mas também devido ao fato de os movimentos sociais, tradicionais ou não, ligados aos protestos do ano passado, com sua grande horizontalidade e flexibilidade, terem-no assimilado, repaginando-o e, sim, dando a ele conotações que talvez não tivesse inicialmente (ou, pelo menos, não de forma clara). E esse é um dos traços do horizontalismo tão característico dos dias de hoje: a capacidade de transição e de adaptação fecunda entre vários setores, mesmo quando não havia contato prévio algum entre eles. E a capacidade de se transfigurar em novas direções que muitas vezes surpreendem os seus próprios criadores (parece que o próximo rolezinho marcado é para doação de sangue no hemorio).

O rolezinho provavelmente não nasceu sob a égide do marxismo-leninismo, e nem sequer como forma de contestação clara à sociedade capitalista e de consumo, mas ele pode vir a se articular nesse sentido. E é isso que tem feito tanta gente tremer no alto das pernas. Mesmo que o rolezinho não tivesse conotações políticas, como querem alguns analistas, inclusive os expertos da Veja, mesmo que se tratasse apenas de um fenômeno associado à famosa ascensão da classe C, ocorrida durante a década de governo do PT, e à lamentável reação da classe média tradicional a essa ascensão, o fato é que em um país desigual e racista como o Brasil, quando um grupo majoritariamente pobre e negro entra em um shopping center isso já é por si só UM ATO POLÍTICO (como o spray de pimenta e as balas de borracha deixaram eloquentemente claro).

Sem isso, as diversas manifestações de intolerância a que fomos obrigados a assistir esta última semana se tornam totalmente incompreensíveis. Foi insuportável ver as imagens de jovens apanhando e sendo presos ou revistados apenas por ousarem entrar em locais aos quais, segundo a opinião das autoridades e dos ricos, eles não pertencem. Parece que o brasileiro conservador segue a regra dos highlanders, de que é proibido guerrear em solo sagrado. Que se mantenham os bárbaros apartados do Eden burguês na terra.

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Devo desculpas formais a Rodrigo Constantino. Caí em um troll desses de internet ontem e divulguei palavras que ele não disse. Seja dito em minha defesa, caí pois o troll envolvia declarações  perfeitamente coerentes com a demofobia característica desse, digamos, articulista. O ódio e o desprezo, por exemplo, com que ele se refere aos beneficiários do bolsa família, como se os verdadeiros oportunistas e vilões deste país fossem, é ilustrativo da iniquidade moral da elite da qual ele faz parte. Rodrigo Constantino vê a realidade brasileira através da lente distorcida do fundo do copo de uísque à beira da piscina. Esse negócio de caviar sobe à cabeça que é uma beleza.

Obs.: estou cagando para o fato de ter “enlameado” a “reputação” (rá rá rá) do RC. O problema é que eu sempre checo tudo que eu posto na internet e, dessa vez, deslizei. Eu tenho um nome a zelar.

 

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Mudanças


Sim, disse ele, e mudou-se. Roupas, livros, discos e confiança no futuro. Já tinha feito isso antes, mas agora era diferente. Estava certo disso.

Sim, ouviu ela, e mudou. Desfez-se de velhas lembranças, ganhou espaço nos armários e nas estantes. Tinha confiança no futuro. E medo. Já tinha feito isso antes, mas agora era diferente. Estava certa disso.

Saberes e sabores reunidos até que noites massacradas pelos dias. Trovejavam por tudo e por nada. Mas sabiam-se amados, amantes, errantes e náufragos do amor possível e ferino.

Ela chegava tarde em casa. Às vezes não chegava. Ele apavorado esperava a notícia da desejada das gentes. Nunca veio.

Outros dias, outras noites, outros amores. Ele incomodado “a casa não é minha”. Ela incomodada “a casa sempre foi sua”.

Até que um dia a casa passou a ser mera propriedade e eles resolveram construir um lar.

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Faltam guilhotinas em país onde sobra Maranhão


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Eu tinha prometido a mim mesmo (e a Ana Souto) escrever algo na linha do feminismo esta quarta, mas o assunto “Maranhão” me trouxe à tona algumas considerações que há tempos ando fazendo. Falar do Maranhão evitando termos como “feudalismo” é algo difícil de se formular. A indecência da licitação da lagosta e do “bacalhau de primeira qualidade” em meio a um escândalo de proporções dantescas, com uma população presidiária à beira do canibalismo, é muito mais do que algo simbólico ou uma representação “pitoresca” do que há de pior na política e na sociedade brasileira.

Os dados dos últimos anuários estatísticos do IBGE já rondavam minha mente há certo tempo. Lembro que quando eu era criança, o estado brasileiro sinônimo de abandono e miséria era o Piauí: terra onde coronéis se locupletavam em piscinas azul-caribe enquanto a população miserenta e flagelada se arrastava na lentidão da esquistossomose, tudo isso às custas dos desvios milionários de recursos da Sudene, teoricamente disponibilizados para obras de combate às secas. Esse cenário era mais ou menos comum a outros estados do nordeste, mas o Piauí, especificamente, apresentava os piores resultados em desenvolvimento humano do país (bem, não existia o IDH na época, mas já existiam os diversos índices que o compõem).

 

A vergonha de uma nação

 

Essa situação, no entanto, mudou, e não necessariamente em benefício do Piauí. O que houve foi a piora desenfreada nos índices de dois outros estados, que são respectivamente, segundo o IBGE, os dois que se revezam entre a pior e a segunda pior posição em qualquer um dos índices que tradicionalmente apontam o flagelo social  brasileiro: Alagoas e Maranhão. Você pode pegar, por exemplo, desnutrição infantil ou analfabetismo, e você verá que, quando o Maranhão é o pior colocado, Alagoas é o vice, e quando o Maranhão é o vice, Alagoas é campeão, o que leva qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade estatística à pergunta: afinal, qual é o problema desses estados? A questão fica ainda mais obscura quando lembramos que cada um deles produziu nas últimas décadas um presidente da república e ambos são “fornecedores” de alguns dos políticos mais influentes desta pobre e miserável Terra Brasilis. Os presidentes foram os indigníssimos José Ribamar Sarney, cuja carreira de poeta foi menos nociva do que a de presidente, embora igualmente infeliz, e Fernando Collor de Melo, cujas credenciais falam por si e dispensam apresentações. Além desses desinfelizes, Renan Calheiros, aquele que “rouba, mas devolve”, veio de Alagoas.

Sarney, além da presidência de triste memória, foi senador de maneira ininterrupta desde então, além de ter sido presidente do senado por quatro vezes. Ele, sua família e seus paus-mandados governam o Maranhão há décadas que pouquíssimos interregnos. Renan Calheiros, além de ser o homem que de fato manda em Alagoas, também foi presidente do senado, embora modestas duas vezes. Quanto a Collor, conta a mitologia política que a sua candidatura à presidência foi uma invenção do Renan, em uma viajem oficial durante o governo Sarney à China, em uma comitiva de uns trezentos políticos e empresários, enfim, em um “aviãozinho da alegria” desses que saem do aeroporto Juscelino Kubitschek de vez em quando (com tais bases, não admira o resultado).

Então, como dois estados que produziram figuras tão influentes no centro nevrálgico do poder decisório político encontram-se em tão más pernas? Não seria de se esperar que essas criaturas, ao menos, cuidassem dos seus próprios conterrâneos (ainda que apenas em busca dos cobiçados votos)? As imagens recentes de cabeças cortadas em presídios imundos e superpovoados demonstram impiedosamente que não. Então, como essa camarilha se perpetua no poder há meio século?

O que se passa é que a democracia brasileira é um fracasso. Não vale aqui a corroída tese de esquerda de que o povo é burro e manipulado pela Globo ou por quem quer que seja. Nem a de direita, que diz que o povo é burro e vota em bolsa família e etc. Enquanto não houver distribuição de renda e elevação mínima dos padrões de vida das pessoas (educação, saúde, a cantilena que infelizmente ainda somos obrigados a repetir), elas continuarão reféns de sistemas eleitorais farsescos e de currais que elegem crápulas que só agem em função dos seus próprios interesses, em detrimento dos da população. Fazendo uma comparação mais ou menos imprecisa, os lideres políticos desses estados são como esses Baratas e professores Washingtons da vida, que podem votar frontalmente contra os interesses da cidade na câmara dos vereadores do Rio de Janeiro, pois eles usam para se reeleger currais eleitorais controlados por milícias e, portanto, estão se lixando para a opinião pública. Por fim, sobra ainda a inescapável observação de que essas famílias Sarneys e afins têm um nível moral tão aviltante e são tão corruptas, incompetentes e irresponsáveis que elas levariam até a Suécia à falência.

Uma observação final, antes da guilhotina. A mídia parece, em momentos como este, ser contra o Sarney. Não é. Ambos têm um histórico repleto de favores um ao outro. Quando Tancredo Neves morreu e Sarney estava prestes a assumir, ele, Antônio Carlos Magalhães (ministro das comunicações de Tancredo, mantido por Sarney) e Roberto Marinho, em um almoço em Brasília, definiram toda a política de concessões da área de comunicação da década que se seguiria, favorzinho que, certamente, não foi esquecido.

 

Das vantagens da guilhotina

 

À medida que envelheço, torno-me cada vez mais romântico. Acredito cada vez mais que o que falta para mudar a história do Brasil é uma boa guilhotina. Uma guilhotina bem alta instalada, digamos, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, pode ter um poder de persuasão fora do comum. Acreditem, a guilhotina foi inventada como forma de humanização das execuções. A sua ancestral, a machadada nua, era um método falível. O carrasco podia errar o golpe, às vezes com consequências bem desagradáveis, dependendo do seu estado de embriagues (bem, se eu tivesse esse emprego, eu viveria embriagado), ou então ele podia ser “zarolho” mesmo. O machado podia, ainda, não estar afiado o suficiente. Todas essas imprecisões prolongavam desnecessariamente a agonia das vítimas, acarretando, muitas vezes, a necessidade de machadadas suplementares para concluir a execução. Pode-se dizer o mesmo sobre a invenção do cadafalso em relação ao enforcamento. Subindo aquela escadinha, o condenado tinha a certeza de que o peso do seu próprio corpo partiria o seu pescoço na queda, gerando uma morte quase instantânea em comparação com a lenta morte por asfixia do método tradicional (que podia chegar a se prolongar por cinco minutos). Fica a dica.

Obs., quem me der uma única boa razão para não pendurar o Sarney na ponta de uma corda ganha pirulito. Sem brincadeira, esse tipo de monstruosidade me faz sempre pensar que o número de pessoas que é preciso matar para mudar as coisas é muito menor do que o número de pessoas que morrem todos os dias para manter as coisas como estão.

 

 

Obra exposta no salão de arte de São Luís

Obra exposta no salão de arte de São Luís

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Ser corno é o de menos


Gostaram do título ?  A ideia era apelar, confesso, mas sensacionalismo é um recurso muito miserável e mal comecei, desisti. Aviso logo que não vou falar exatamente de adultérios. Pronto. Lá se foram os leitores cornudos raivosos, obcecados pelo lado mais banal do assunto. O leitor livre destas taras, saiba que  vou falar, de certa forma, sobre adulterações e traições. Tenha paciência que eu chego lá.

Esta semana foi o aniversário de Simone de Beauvoir, faria 106 anos. Eu a revisito vez ou outra – e  sempre com aquele prazer de reencontrar certos amigos que sabemos o que vão dizer mas pedimos conselho mesmo assim.  Ela mora na estante onde a deixei ao lado de Virgínia Wolf e gosto de imaginar que na minha ausência elas se visitam, sob o teto de Virgínia, aquele que lhe permitiu virar escritora depois de receber a herança de uma tia ou no Café de Flore. Às vezes posso vê-las dialogar mas nunca me senti no direito de participar ativamente . Mulheres de outros tempos e outras terras devem  ter muito a conversar, inclusive sobre o que não é da minha conta.  O que eu queria dizer é que na última visita que fiz a Simone me comprometi a escrever mais vezes sobre a condição feminina neste ano que se inicia. Porque será, ela me perguntou, que você escreve tão pouco sobre isso ? A princípio, tentei me defender : sou  feminista convicta. Tenho consciência do quanto custou e quantas grandes lutadoras foram necessárias para obter a liberdade que desfruto, inatingível para qualquer das minhas antepassadas. Sei das lutas todas do feminismo. Provoco homens e mulheres a pensarem e agirem de maneira a reconhecer e lutar pela igualdade dos gêneros, no que diz respeito aos direitos e deveres. Vejo e denuncio com horror a escalada do feminicídio. Combato com veemência a exploração descarada dos nossos atributos físicos e do apelo erótico grosseiro ao sexo oposto para a venda de todo o tipo de porcaria. Detesto e debato, sempre que posso, o lado perverso da educação do imaginário de nossa menininhas como  “ princesinhas da disney” para mais sonharem com príncipes encantados e castelos cheios de cacarecos do que terem sede de aprender e experimentar a vida como seres humanos completos.  Sim, eu acredito que você faz isso tudo aí, ela me disse, mas porque não escreve?  Prometi que escreveria para não ter que pensar mais sobre o porquê não escrevia, esse é o real da coisa.

Foi fácil prometer mas duas semanas passadas admiti que não conseguia. Devia intuir. Na virada do ano, pensei homenageá-la citando sua célebre ” ninguém nasce mulher, torna-se”  e acabei falando da minha condição de ser humano. Cumprimentei meus amigos com a variação “ Ninguém nasce ser humano, torna-se um”.  Acho que ela vai aprovar porque certa vez disse que o “homem é considerado ser humano mas a mulher é vista como fêmea e quando ela se comporta como ser humano, a acusam de imitá-lo”.  Resumo de um beco sem saída. Muita coisa mudou desde então ? Em muitos lugares do mundo, sim,  em outros avançamos, em alguns regredimos. E o próprio feminismo se desdobrou em questionamentos sobre si mesmo, a ponto de se falar em beco sem saída para ele.

A real é que me senti encalacrada, Simone, sem saber o que escolher entre as tantas pautas que o Brasil oferece.  Me recuso a promover a funkeira popozuda ao rol dos assuntos feministas como andaram a fazer por aí. Também não vou fazer papel de pedra pois, francamente, com tanto tubarão levando vantagem em cima das nossas  bundas avantajadas , Vanessa, para mim, é peixe pequeno. É só mais uma representante comercial desses produtos falsificados que se vende nos shoppings  das liberdades ilusórias. Faz seu pregão, como todos, anunciando variações do mesmo  goze mais, goze melhor . Quer o quê freguês ? Tem drogas proibidas e liberadas, jogos de sempre e jogos de ocasião, agradam o empregado e o patrão,  pano e silicone para o olhar, movimento e emoção  pros quadris, distraiam-se, distraiam-se que a vida é curta, é só chegar freguês, na minha mão é mais barato – é ralo mas entretêm.  Também não vou falar da polêmica do top less na praia de Copacabana, onde tinha mais câmeras fotográficas do que mamas de fora, mais xingamento do que discussão do que significaria liberar esta prática banal nas praias do país do carnaval.  Falar o quê desta surreal constatação de que em poucos dias irão desfilar pelas ruas da cidade completamente peladas e serão incensadas e elogiadas como expressão máxima do melhor e da melhor “ mulher brasileira” ? Preguiça. Mas acho que o que me pega mesmo, Simone, é a quantidade de assassinatos de mulheres por seus ex-maridos e namorados e amantes, moda de todos os verões. Eu estava era com vergonha de descer tão baixo para falar do ser humano do gênero feminino. Porque aqui no Brasil, minha cara, a gente encontra sim os mesmos mecanismos que forjam a opressão da mulher que  sua obra descreve. Mas o negócio é que a lama que embrulha isso é densa. Densa e fedorenta.  Tem de ter estômago para pescar alguma coisa concreta debaixo dela. Eu vou tentar, só porque prometi a você.

Descobri, zapeando a TV numa destas noites quentes de fazer perder a dignidade, um programa  de auditório.  O roteiro era o seguinte. Uma mulher escrevia para a produção pedindo que seu marido passasse por um  “teste de fidelidade”.  Os tais “ profissionais” então, contratam “ atrizes profissionais” que vão sob algum pretexto, atrair o tal marido para um encontro sexual.  Digo o tal marido porque nem sei se é tudo ficção sendo todos que participam meros contratados do espetáculo, mas pouco importa. O fato é que neste dia o tal marido encontrava-se com duas mulheres. Pouca nudez no quadro, muita sugestão e, no meio da sacanagem,  uma delas confessa ser transsexual. Tudo isto é acompanhado por um monitor no palco, com o apresentador interrompendo minuto a minuto para zombar e atiçar a plateia a escrachar a mulher do cara. Muitos gritos de corna depois,  a mulher decide se oferecer ao primeiro que queira beijá-la. Vem o voluntário que ela apontou entre os muitos que se ofereceram. Trocaram um selinho de tal modo ligeiro que faria o beijo lésbico da Madona parecer sexo explícito.  O marido, por sua vez, visto pela tela não perde a empolgação e acaricia a tal atriz, sem titubear diante da declaração de que ela no passado foi menino ( sic). Muito gritaria da plateia depois, as atrizes revelam ao homem a farsa. A mulher pede a presença dele, ele topa vir ao palco. Ele é trazido ao palco, arremessa o ramo de flores sobre a mulher e se atira furioso sobre quem roçou seus lábios nos dela. Seguranças o impedem de alcança-lo mas não o agarram, deixam que continue a tentar  atingir o apresentador, o beijado, a mulher, A plateia solta urros de prazer e alterna gargalhadas com coros de corno, viado e coisas do gênero. Entram as atrizes. A plateia vai a loucura. O homem diz à mulher que ela não é nada perto das atrizes, se aproxima de uma delas, quase a abraça, diz à mulher que ela é baixinha e feia, enfatiza as curvas e atributos das atrizes. A mulher diz ao marido que elas nunca vão querer ficar com um pobretão como ele. A plateia urra que a transexual não é mulher e que o homem é viado. O apresentador agora resolve portar-se como uma caricatura de diretor de escola e exige respeito com a visita. A transsexual, um  bocado nervosa, cospe rapidamente seu recado de profissionalismo, orgulho próprio e “necessidade de combate ao preconceito”. Não sei se é o calor, a taça de vinho gelado, o náusea que sinto ou tudo junto que faz a minha sala girar. Agarro o controle remoto mas quero resistir, assistir até o fim,  entender o roteiro completo desta arena romana. Não consegui. Alguma parte da minha humanidade falou mais alto e desliguei o aparelho, usando a potência que a Presidenta disse que é a que nos cabe neste latifúndio da comunicação de massa. A culpa foi minha, Presidenta, eu sei. Sendo, como sou, uma obcecada pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, não devia sintonizar canais abertos. Eu não preciso então porquê vejo ?  Eu assisto de vez em quando para ver se eles ficaram menos ruins, menos porcos, menos selvagens. Mas só pioram.

Eu queria muito que você falasse com a Presidenta, Simone, quem sabe você pudesse fazê-la entender do poder do imaginário vendido pelos meios de comunicação de massa na formação do pensamento e da identidade de uma nação como a nossa. Talvez você possa esclarecê-la que há milhões e milhões de homens e mulheres e jovens e crianças que consomem por horas, todos os dias, este tipo de programação. Lembrar que os que menos podem acessar a internet e ler livros são os que passam mais tempo na frente da TV. Por falta de opção, por hábito, por preguiça,  porque as noites são quentes, porque não há tantos canais assim à disposição, porque o adultério é um assunto que mexe com as pessoas, com seus sentimentos, instintos, então vai lá  saber como é que “ os outros” passam por isso. E então eles vêm que ser  selvagem é legítimo e neste ponto complexo de seus instintos e emoções reside alguma espécie de honra masculina e patriarcal que as mulheres querem imitar mas não conseguem.  Todas as TVs ruins do mundo fazem coisas deste tipo. Mas só a nossa o faz em português, com brasileiros e para os  muitos dos nossos conterrâneos que não conseguem ler legendas.

Eu nem sei se ela já não sabe  tudo isso, sinceramente. A única declaração pública que ouvi dela sobre o assunto foi que o “ controle da TV é o controle remoto”. Pode ter sido só uma declaração infeliz num mau dia. Mas também pode ter sido dita para tranquilizar os donos das concessões, estes mesmos que não têm a menor responsabilidade sobre o tipo de programação que exibem porque as ganharam em conchavos e negociações escusas, há muitos anos e têm compromissos apenas com seus doadores ou nem com eles. Isto quando elas não são só um meio para eles manterem ou escalarem cargos políticos, porque os cofres públicos é outro filão que desejam explorar até o osso. Há cornos de todos os sexos que só se importam com dinheiro. Eles não se importam nem um pouco com as imagens, ideias e carniça que vão atirar para alimentar a imaginação, a compreensão do que é “normal”, os hábitos que parecem ser “ normais-porque-passam-na-televisão” de seu público. Que até poderiam passar na TV, desde que não fosse só isso, sempre as mesmíssimas porcarias de músicas, dramaturgia e restrição de acesso à imensa diversidade da produção cultural  brasileira.  Eu sei muito bem que eles sequer deixam o assunto da democratização da mídia ser discutido nestes mesmos canais que são concessões públicas, repito,  porque sabem que estão completamente fora da lei. Fora do que diz a Constituição – que não permite a concentração econômica desses meios na mão de meia dúzia de empresas-famílias. E se eles estão fora do que diz a Constituição e não estão nem aí para sua responsabilidade social como 4º poder, o que é que custaria se juntarem para tentar derrubar a Presidenta ?  A presidenta pode estar sob o domínio deles neste assunto, Simone, saiba disso. Não estaria sozinha.

Não vou querer ensinar o parto à parteira mas às vezes penso que você ampliaria sua não-pequena obra tivesse visto a situação da mulher brasileira. Porque se é verdade que no Brasil se  reproduz toda mazela da sociedade patriarcal que você descreve, é fato também que somos quase a maioria das chefes de família, sem a figura masculina dentro de casa, com todas as responsabilidades econômicas decorrentes. E ainda: ganhando menos que os homens e estudando mais e trabalhando mais. Isto tudo sujeitas a sermos estupradas, agredidas e  insultadas corriqueiramente pelos  brutamontes todos.

Conto um pouco mais do nosso drama, Simone.  Há muito tempo não vejo telenovelas (adoramos telenovelas), tempos atrás as vi para uma breve pesquisa sobre os temas mais explorados por nossa dramaturgia e aquilo que é chamado plot pelos especialistas. Adivinha ? Sim, adultério , o campeão , em todos os horários. Mais ou menos explícito com muita ou pouca roupa.  Saiba também que duplas de vilãs fazem enorme sucesso e são reeditadas sempre. Uma mais pérfida que a outra, uma mais fútil do que a outra, uma mais disposta a qualquer coisa para ficar mais rica do que a outra. Parece que é muito comum o conflito dramático girar em torno de traições e traições sobre traições, adultérios, muitos adultérios. Soube que cenas de ataques físicos ou verbais  entre elas dão picos de audiência. Dizem que é divertido, muitas mulheres dizem que é divertido. Eu não sei me divertir com isso.

Eu sei muito bem que você não dava bola para a monogamia, Simone, e não escondeu os ciúmes que a espetaram na vida privada. Tenho ideias bem alinhadas com as suas neste particular. Então me diga : como é que se pode enfrentar a gravidez na adolescência no Brasil, quando é que se vai admitir que casamento monogâmico e heterossexual  não é indispensável para a ordem social e nunca foi o arranjo mais comum  no Brasil, que  ser mãe pode ser o máximo a que um ser humano do gênero feminino pode aspirar como realização pessoal  mas que as condições concretas de seu exercício massacram as nossas mulheres. Sem prejuízo de aparecermos na TV como fêmeas estereotipadas, fúteis e possessivas, descontroladas como cães raivosos, interesseiras como mascates , vaidosíssimas  e ignorantes como apresentadoras de programas diurnos,  arrogantes como funkeiras ambiciosas, mocinhas tolas que passam a vida a caçar namorados e maridos. Por aqui não falta quem diga que isto é a ficção, que a ficção depende de personagens femininas rasas e caricatas, como se só houvessem ignorantes entre nós. Nós, as mulheres reais, vamos por aí, sendo julgadas e insultadas pela nossa aparência, sejam decorrentes da idade, cor ou preferência por vestimentas, Simone, também porque muito poucas de nós podem se equiparar à aparência delas e elas parecem estar em toda a parte, mas não estão na vida concreta, real dos nossos muitos becos,  vilas e favelas. Nas bocas de dentes falhados de qualquer botequim da pátria talvez você se horrorizasse ao ouvir homens barrigudos falarem  sobre a carne apetitosa exibida na tela e a carne de segunda ou quinta que o espera em casa. Por isso também  moças se convencem a arriscar a vida em macas de açougueiros para tentar adulterar a natureza dos seus corpos.   O grosso da imagem da mulher na TV brasileira, cara Simone,  é trabalhada com anúncios publicitários para um país imaginário que a sociedade tenta reproduzir.  E neste país há um desfile interminável de dublês de atrizes de filme pornô. Tentativas de imagens- cover das grandes fêmeas da grande máquina de roliúdi. Simulacros e adulterações de todo tipo. Como quando exibiram mulheres negras de costas, apresentadas por uma mulher negra, para que se escolhesse, como em um hediondo mercado de carne humana, as nádegas mais apetecíveis.

Enquanto isso, as mulheres reais morrem pela mão de homens que, como aquele encenado pela TV,  desejariam esmurrar a mulher que encostou os lábios nos de outro homem mesmo que em momento anterior ele estivesse disposto a copular com duas outras mulheres. Enquanto isso é apresentado na televisão como mais alto e melhor objetivo na vida fazer sucesso, ser célebre de qualquer maneira ,  nesta mesma televisão. E isto tudo é visto também por menininhas muito pequenas, Simone, em lugares onde o saneamento básico não chegou mas chegou a TV colorida, onde não há  praças de esportes  para elas e  a TV se dá muito bem , onde não há locais seguros para recreação porque há tráfico de drogas, a TV reina soberana. E onde traficantes se dão bem, andam em carros possantes e compram tudo que o dinheiro pode comprar, eles são também a tradução possível daqueles  príncipes encantados que  vendem às meninas. E em muitos lugares, Simone, as mães destas meninas,  na tentativa de subtraí-las a estas influências e à  visão encantatória destas imagens, as arrastam  para igrejas onde vão ser doutrinadas a pensar e se comportarem como mulheres do século XIX, ainda que usem roupas e cabelos da moda atual para que estejam também disponíveis ao  mercantilismo mais descarado.   Você escreveria sobre tudo isso, Simone ? Aposto que sim mas eu não consigo.

Não sei se vou conseguir cumprir a promessa de voltar mais vezes ao assunto da condição feminina no Brasil. Porque experimento  algo tão repulsivo com o que vejo  que mal começo a pensar no assunto a clareza se dissolve em uma indignação raivosa. Dá vontade de mandar às favas a civilidade e dizer insultos ao vento. Insultar qualquer um, por qualquer motivo é um hábito bem consagrado no Brasil mas usar o gênero feminino para isto até rendeu um crônica do Duvivier esta semana. Este título é também um convite a que os homens relaxem quando forem chamados de cornos.  Num país machista como o nosso, suas mães, irmãs, companheiras,  filhas e amigas, mais cedo ou mais tarde, serão chamadas de putas. E qualquer estrangeiro que as veja pelo olhar da nossa televisão  vai pensar que somos todos, no mínimo, uns idiotas.  Ser corno é o de menos.

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Acabou o champanhe


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Sou, por princípio, contra balanços de fim de ano. Sou assumidamente um dos chatos da astronomia, que de maneira geral não entende todo esse alvoroço em torno à passagem do planeta por um ponto aleatório qualquer do sistema solar, mas realmente este ano foi ao mesmo tempo incrível e nefasto. Ano estranho, ano rápido. Mudaram muitas coisas no mundo, mudaram muitas em mim, em ambos os casos tanto para pior quanto para melhor.

Foi o ano em que decididamente voltei a escrever. Sem firulas, digo logo, meu maior talento, e aquele no qual devo mesmo investir. Tem tanta gente medíocre com coluna em jornal e em revista, publicando livro, sem ter nada a dizer e sem talento nenhum. Eu tenho. Ambos. Com tudo que eu trabalho, cuidando de filha e com todas as obrigações que todo mundo tem em uma vida adulta, não foi um processo fácil, e considero uma grande vitória o esforço que empreendo para escrever todas as quartas-feiras em um blog, para retomar o meu livro (parado há séculos) e para preencher outras funções. Esforço que me demanda um tempo que, infelizmente, muita gente próxima a mim não consegue entender. Pois preciso disso para respirar, para ser feliz e para voltar a ser quem eu sou, quem eu sempre quis ser.

Foi também o ano em que voltei de sola à militância, que andava meio parada nos últimos anos, não apenas devido às já citadas imposições da vida adulta, mas também devido à falta de motivação para me comprometer mais a fundo com qualquer projeto político, uma vez que todos estavam, de um jeito ou de outro, adormecidos, deturpados, traídos, domesticados  ou apenas nem sequer mais existiam. Atendi ao chamado das ruas e mesmo com todos os erros, todas as limitações e todas as críticas que eu próprio faço aos eventos e movimentos que se formaram este ano, tenho um imenso orgulho de ter estado na frente dessas “barricadas” e de ter feito parte disso, tanto quanto possível, a despeito de trabalho, de projetos pessoais e etceteras. A minha vontade era estar presente em cada ocupação, em cada protesto, de morar em cada uma das barracas, enfim, de ter testemunhado plenamente todos os eventos que se deram desde o início das chamadas “jornadas de julho”. Queria que tudo isso tivesse ocorrido quando eu tinha menos de 30 anos, quando eu poderia ter me dado mais. Invejo, assim como admiro profundamente, todas as pessoas que estiveram desde o início à frente desses processos.

O corolário infeliz de tudo isso foi a escalada da repressão. Em termos de memória pessoal, não tenho lembrança de período mais sombrio do que este que vivemos. Não sou dos exagerados e sem noção de história que dizem “está pior do que ditadura militar”. Não está. Graças a deus. Porém, é nítido que a chamada democracia burguesa está dando sinais de endurecimento. A invasão estúpida, ilegal e violenta da Aldeia Maracanã agora em dezembro é uma evidencia sólida disso. A polícia invadiu, a mando da Odebrecht e do governo nazifascista do Sérgio Cabral, a Aldeia, e desalojou seus ocupantes, mesmo a despeito de uma ordem judicial garantindo aos indígenas e aos ocupantes o manejo daquele território. Na democracia burguesa, uma ordem judicial é uma ordem judicial. Quando o executivo atropela decisões do poder judiciário, isso revive lembranças recentes e funestas. Isso, sim, remete a tempos de ditadura. As prisões arbitrárias também. Assim como a lei contra os mascarados e a lei endurecendo contra os manifestantes, aprovada às pressas durante o governo da ex-vândala Dilma. O Brasil é uma grande democracia, contanto que você não seja pobre. Nem negro. Índio, então, de jeito nenhum. Homossexual ainda vai, se você for discreto e ninguém ficar sabendo, ou se você for estereotipado e ridículo. Mas, sobretudo agora, o Brasil é a melhor das democracias se você ficar em casa vendo jornal nacional e achando tudo ótimo. Sai pra rua, que você pode ser preso, pelos crimes inomináveis de porte de máscara, ou de “porte de escadaria”, como definiu Renato Cinco em discurso recente na câmara dos vereadores.

 

Xxxxxxxx

Como já disse, sou dos chatos da astronomia e blá e blá e blá. Infelizmente, escrevo este texto, mais uma vez, atropelado pelos fatos. Enquanto tento brincar em paz, com minha filha, depois do meu exaustivo de trabalho, acompanho as remoções na Mangueira. O ano passado não terminou. O ano passado dura, na verdade, há décadas, quiçá séculos. Ele voltou, em pleno janeiro, rápido e assustador, igualzinho a quando o deixamos em dezembro. Boa copa das remoções para todos.

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2013 foi vandalismo!


E lá vinha 2013, meio barro, meio tijolo, reme-rememente. Fora Renan Calheiros, Fora Marco Feliciano/Morte a Marco Feliciano/Ao Inferno Marco Feliciano/Esquartejamento de Marco Feliciano/Salgar a terra da casa e o espírito de Marco Feliciano/Etceteramente todos os votos negativos a Marco Feliciano…

[aconselhável ler ao som dessa canção]

Sucessão papal, por uma rara renúncia− há quem diga denúncia− e não por morte. Morte essa que, por sinal, marcou um antagonismo de personagens históricos no início e no fim do ano: Thatcher, cuja morte foi festejada pelos britânicos e Mandela, que consternou a população de seu país e do mundo, mesmo aí inclusos os casos de escancarado cinismo e desfaçatez. Aliás, a própria dama enferrujada, décadas antes o classificara terrorista.

tatcher

mandela5

Ainda antes se fora Chávez, mas permaneceu o bolivarianismo, ao qual ele abrira as portas da Venezuela pra desespero de sua classe média! E Nicolás subiu de Maduro!

Depois da agrura dos guaranis-kaiowás, o desplante do Museu do Índio/Aldeia Maracanã: o episódio mais atual do vasto genocídio racista anti-indígena brasileiro. Índio, no Brasil, não tem nem mais sequer programa.

Maracana Indians

O Maraca privatizado sem protestos. Ex-Maracanã se fez: Maracanex!

maraca privado

Um herói surgiu, construído com ardor pela mídia oficial, moldado em farsas, em joaquinescas barboseiras!

Eis que os porto-alegrenses primeiro fizeram um fantástico movimento contra o aumento de passagens entre abril e maio. Contudo, no início de junho, o Movimento Passe Livre, de São Paulo, reprimido brutalmente, se tornaria o estopim de um revolta viralizada no meio virtual, não só contra o aumento de passagens, mas por uma série de pautas ora de luta mais popular e democrática, ora mais manipulada, midiaticamente, digo.

E como se protestou: contra o aumento de passagens, contra o desgovernador do Rio (até em São Paulo!), na visita do papa, contra as obras da Copa, na histórica greve da Educação! E como a polícia caninamente baixou o sarrafo, covardissimamente, revisitando os mais plúmbeos momentos ditatoriais de nossa recente (des)memória, a passos lentos e trôpegos revelada.

1964 b

protestosmanifestação-dia-20-06

greve- professores 9mafalda policia

Contudo foram os maiores protestos da história do país. Parafraseando Lênin, se houve anos na nossa história recente que não valeram um dia, vieram dias que valeram anos. Anos engolindo a seco

E uma pergunta ecoou transcontinental: Onde está Amarildo?

amarildo 2

amarildo palestina

Muita história da carochinha: “… a manifestação seguia pacífica, até que, por volta das 20h, um grupo de baderneiros…”.

carochinhaSeguiu-se a quebradeira dos bancos , a literal, − quem atirou a primeira pedra?− já que a metafórica o governo federal não permite. Um ano inesquecível para os vidraceiros!

banco- brechtAs manifestações daqui apinhadas de vândalos baderneiros

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“Polícia da Turquia reprime ativistas em praça de Istambul”

amor seguroprotestos2

As ruas entoando “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”, vaias e similares forçaram, tamanha foi sua intensidade, as organizações Globo a uma “meia culpa”. A mídia em geral já não consegue mentir tão impunemente, embora ainda desfrute de poderes descomunais.

meia culpa

Já os Black Blocs se não se cuidarem entrarão na moda e tudo, estilo oculto em tons de grafite. Até os ativistas da causa animal já aderiram.

Apesar da truculência policial, deu-se aas ruas um aroma de povo em luta que tem tudo para nela se entranhar!

beagles livresE o petróleo segue jorrando distante do povo. E, mesmo sem ele,  a situação da educação é negra!

E, este ano (não) tem Copa! 2014 já entra em campo com pinta de que vai se tornar um clássico!

2014b

E aqui aportaram mais médicos, mas médicos indignaram-se, em exercício de reserva xenófoba de mercado.

mais vandalos

Snowden, pelo crime de informar o ininformável, tal qual Assange, autoexilou-se forçada e persecutoriamente em terras russas, neossiberiezação, em tempos de frias guerras! E Obama ficou mal na fita, no vídeo e nas escutas.

Ainda fomos brindados neste fim de ano com o irreality show, panis et circenses, das prisões do tal Mensalão.

Teve também o helicóptero do pó, a maior apreensão de drogas já feita, junto ao tráfico real, de colarinho branco, no Brasil. Mas, parece que este assunto é pra não ser muito comentado não.

Agora, Lou Reed morrer já foi vandalismo!

P.S.: em fevereiro, volto a publicar, a menos, claro, que “forças superiores” se evidenciem! Até lá…

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