Arquivo do dia: 4 de maio de 2013

The Working Dead


bonitão 2 c

Uma nova onda comportamental varre nossos afazeres: a onda zumbi. Os zumbis nunca estiveram tão na moda quanto nos tempos atuais. Há uma curiosa divinização, inclusive, pasmem, estética da forma zumbi. Os zumbis são, em verdade, tematizados há tempos, mas nunca haviam experimentado esse holofote pop. Em vários grandes centros do mundo ocidental (onde há ressonância dessa cultura de massa pop), tem ocorrido a Zombie Walk, marcha que reúne participantes caracterizados de zumbis. O evento se iniciou em 2003, em Toronto, no Canadá (ah! Esses canadenses vanguardistas… Marcha Zumbi, Marcha das Vadias…). No Brasil, o evento já ocorreu em mais de quatro dezenas de cidades, tendo sido primeiramente registrado em Belém em 2005. Assim, os zumbis vêm atingindo ápices de estrelatos até então inéditos; até série televisiva com elevada audiência em vários países, The Walking Dead.

Os zumbis são daqueles seres que voltam da morte. São, assim, uma espécie de contraparte material dos fantasmas. Originalmente, surgem na crença vodu da possibilidade de se reanimar os mortos (engraçado pensar que foi essa mesma crença que levou Anakin pro Lado Escuro da Força!) pela ação dum sacerdote ritualístico. Sempre são caracterizados como letárgicos, trôpegos (o que torna, surpreendentemente, as cenas de perseguição zumbi empolgantes), deteriorados pela ação do tempo que lhes apodrece o próprio corpo, desprovidos de inteligência e, ironicamente, com uma dieta à base de cérebros. A origem, nas várias versões/caracterizações de zumbis é bastante variável: feitiçaria, acidentes nucleares, vazamentos químicos, vírus, experimentos mal sucedidos…

Independente da motivação, o fato é que há uma escalada zumbi no mundo! Curiosamente, esse universo temático surge como subcultura, muito visível em filmes B, tanto clássicos quanto contemporâneos. A título de exemplificação:

jason

Jason, talvez o mais célebre dentre os zumbis

solomon grundy[Solomon Grundy, zumbi vilão da editora Detective Comics, inimigo da Liga da Justiça]

[Strippers Zumbi, cinema B contemporâneo]

Mas, com certeza, o primeiro grande momento de ápice zumbi foi proporcionado pelo Rei do Pop:

[Opa, opa, opa! Momento de digressão… Outro dia, uma aluna me dizia de sua surpresa ao descobrir que Michael Jackson fora negro. Curioso como a distinta percepção de tempo, dada, dentre outras razões, mormente pela motivação geracional, consegue transformar em novidadeiro um fato sabido desde sempre. E, a respeito do “embranquecimento” de Jackson, estava eu a pensar no fato de que o embranquecimento natural duraria milhares de anos, dezenas de séculos, algo em torno de 20 mil anos (É esta uma das estimativas pro tempo de despigmentação do homo sapiens saído da África e estabelecido na Europa, especialmente ao norte). Tal despigmentação seria consequência da própria interação com os meios naturais/climáticos, os mesmos que levariam à necessidade de mais pelo no corpo. Assim, a tecnologia fez, ainda que doentiamente− mas isso não importa nesta reflexão− por ele em 20 anos o que a natureza faria em 20 mil. O tempo comprimido por um fator de mil vezes. Impressionante, não?!]

Vencida a obrigatória digressão, retomemos nosso rumo em nossa caminhada zumbi de leitura, lembrando doutro ícone da cultura zumbi, Lara Croft, que, inesperadamente, sensualizou em meio à matança zumbi, alcançando Hollywood.

E assim a nova estética zumbi vem se instituindo como padrão alternativo, desfofurando inclementemente nosso mundo:

teddy zombie

zombiu-modelo

Eis uma breve explanação sobre os adoráveis e vivazes zumbis. Mas que raios de fatores motivarão esse estrelato zumbi? O que, afinal, finca os sustentáculos desse modismo? O que leva à necessidade expressiva de zumbicização? Tratar-se-á da desconstrução de Jacques Derrida? Será uma metáfora de perspectivas negacionistas? A epifania da pós-modernidade? A total falta inconsciente de perspectivas? Manifestação do bom e velho ócio criativo?

Lembro bem que, especialmente, os anos 80 ficaram marcados por uma espécie de estética pós-apocalítica, como reflexo do crescente clima de angústia em torno do avolumamento de arsenal nuclear por parte dos EUA e da saudosa URSS. A expressão mais acabada disso pôde ser vista no cinema hollywoodiano, através de películas como Mad Max, Blade Runner, Exterminador do Futuro, Fuga de Nova York, Fuga de Los Angeles, pra ficar em poucos exemplos. Poderíamos lembrar de séries também do período da Guerra Fria, embora de anos anteriores, que já incorporavam esse traço: Planeta dos Macacos, Logan’s run (pra quem não lembra ou não conheceu, é só acessar o hiperlink), dentre outros.

O ponto em que quero chegar é que há algo na conjuntura atual que induz essa atual onda. Ora, como zumbi, vivem amplas parcelas da população de todo o globo, como diria José Américo de Almeida, em trecho de A bagaceira, romance de 1928, ao relatar o êxodo da seca de 1898 no Sertão nordestino, é uma torrente de:

“[…] esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.

Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.

Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam.”

É ou não uma caracterização que tanto diz respeito ao trabalhador em nossa sociedade? Redivivos, mortos vivos! Escravos de mais-valia e menos-vida! Massa amorfa só livre em sonhos…

A origem da palavra trabalho, em português, bastante aceita pelos etimólogos, é a palavra latina tripalium, instrumento romano para tortura. Esse sentido insuspeito que o trabalho toma pro torturador, ratificado histórica e socialmente pela etimologia da palavra para a ele se referir já da conta de toda a perspectiva que temos pra encarar a questão.

tripalium

Ilustração que reproduz o tripalium romano

Esse amaldiçoado trabalhador, cuja gênese deriva da tortura, cadáver andante, faz seu percurso hipnótico de todos os dias alimentado pela promessa de ter por cérebro, no sentido gastronômico zumbi, apenas seu salário, palavra essa que, por sinal, se origina do punhado de sal, de valor econômico em Roma (afinal servia como conservante, tempero e pra limpeza), utilizado pra remuneração de seus soldados, salarium argentum, pagamento em sal. Assim, a caminhada histórica do trabalhador, ao longo da história, não podia mesmo ser de doçuras.

1_de_Maio

E foi sem qualquer doçura que em 1º de maio de 1886, o imponderável tomou lugar a partir da fábrica da Ford em Detroit, EUA, onde não se celebra, por sinal o Dia do Trabalhador na data em que todo o resto do mundo o faz. No dia 1º de maio desse ano, na industrializada Chicago, milhares de trabalhadores foram às ruas reivindicar melhores condições de trabalho, entre elas, a redução da jornada de trabalho de treze para oito horas diárias. Neste mesmo dia ocorreu nos Estados Unidos uma grande e histórica greve geral dos trabalhadores. Dois dias após os acontecimentos, um conflito envolvendo policiais e trabalhadores provocou a morte de alguns manifestantes. Tal fato gerou revolta nos trabalhadores, provocando outros enfrentamentos com policiais que redundariam ainda em novas mortes, em conflitos pelas ruas que se estenderiam até 04 de maio. Em homenagem aos mortos nos conflitos, a Segunda Internacional Socialista, ocorrida na capital francesa em 20 de junho de 1889, criou o Dia Internacional do Trabalhador, que seria comemorado sempre em 1º de maio.

martires 1886

Os mártires de Chicago

Denominar o Dia do Trabalhador como Dia do Trabalho é uma inversão de valores e desvio de foco discursivo, retirando de cena o agente homenageado, promovendo seu apagamento e lhe pondo no lugar o amorfo objeto de seu fazer.

O que faz um(a) trabalhador(a) acordar de madrugada, encarar umas duas horas de trânsito, trabalhando em algo que lhe desgosta por completo, que lhe mutila a autoestima e que o/a remunera na medida da sobrevivência, cujo lazer se resume ao estritamente mínimo necessário pra não pirar ou pra se alienar do mundo? A solução de dominação ideológica do capitalismo é magnífica! Sem assumir seu próprio funcionamento, além dos meios materiais, sintetizados na mais-valia, o sistema possui uma máquina ideológica soberbíssima. Ouso dizer que anos-luz à frente do que dispunha a Igreja e a nobreza durante o Feudalismo. A diferença, em termos históricos, talvez seja que a estaticidade estrutural da sociedade medieval, assim formatada por seu próprio modo de produção, não possibilitava os abalos visíveis que a própria dinamicidade do capital põe às claras. Isso não torna em si o capitalismo mais fraco dado seu enraizamento ideológico ativo e portentoso. Romper o circuito de alienação imposto, que parte do alheamento primeiro concreto, quando o trabalhador perde a perspectiva do que seja o seu próprio produzir. O único sentido de seu fazer é alcançar a pífia remuneração que o manterá de pé, sem ganhos humanos significativos. Sucesso e crescimento meritório são, em termos absolutos, desprezíveis e mais servem pra retroalimentar a máquina de dominação ideológica do que pra “melhorar” o sistema, até porque não há como “melhorá-lo”.

mais-valia

Nem se precisa mais desenhar!

Não bastasse tudo isso, a identidade de classe ainda está profundamente corrompida. Quem são hoje os trabalhadores? Quantos assim se sentem? Estamos todos no mesmo barco unidos por nossa consciência de sermos a mesma classe? Não é, ideologicamente, simples, no dia a dia, considerar que uma série de membros efetivos da classe trabalhadora o seja. Refiro-me àqueles trabalhadores que são encarados no dia a dia como “bem de vida”, em vários níveis, do médico com seu consultório ao jogador de futebol. Pura cooptação ideológica por meios materiais e eficiente nos dois sentidos, em relação ao desmonte da identidade da classe trabalhadora. Em geral, esses trabalhadores “aburguesados” estão infinitamente mais próximos da base de nossa sociedade do que do topo de nossa verticalizadíssima pirâmide.

piramide- capital

Ah… o trabalho, num mundo que não vise ao lucro, pode ser a expressão da criatividade libertadora, claro que atendidas as demandas sociais básicas, responsabilidade de toda uma sociedade. Utopia?! Acredito que chegará o tempo disso tomar lugar na História! [manjaram o trocadilho?!]

[composição original de John Lennon]

E a, tão declamada em verso e prosa, tecnologia?! A mesma capaz de suplantar na ordem de mil vezes a natureza… Não me parece que nos caiba, embora tenha respeito histórico pelo feito, sermos os neoludistas. A tecnologia pode servir, noutro possível mundo, pra liberar o homem pro seu exercício criativo, pro seu lazer, pras suas inerentes humanidades… As máquinas, hoje contabilizadas como “trabalho morto” poder dar à luz tantas vidas vindouras… No mais, apropriemo-nos de tudo o que cheira à libertação de nossos grilhões.

Nem mortos vivos nem vivos mortos! Viva os trabalhadores! Vivam os trabalhadores! Eternizem-se os trabalhadores!

Que se mantenha a chama! É de tudo que precisamos pra iniciar erupções no mundo e na História que não acabou, não morreu; segue incessante e transformadora!

operarios- tarsila

Operários, Tarsila do Amaral, 1933

PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ (Bertold Brecht)

Quem construiu a Tebas de sete portas?

Nos livros estão nomes de reis:

Arrastaram eles os blocos de pedra?

E a Babilônia várias vezes destruída

Quem a reconstruiu tantas vezes?

Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?

Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?

A grande Roma está cheia de arcos do triunfo:

Quem os ergueu?

Sobre quem triunfaram os Césares?

A decantada Bizâncio

Tinha somente palácios para os seus habitantes?

Mesmo na lendária Atlântida

Os que se afogavam

gritaram por seus escravos

Na noite em que o mar a tragou?

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Sozinho?

César bateu os gauleses.

Não levava sequer um cozinheiro?

Filipe da Espanha chorou,

quando sua Armada naufragou.

Ninguém mais chorou?

Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.

Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.

Quem cozinhava o banquete?

A cada dez anos um grande Homem.

Quem pagava a conta?

Tantas histórias.

Tantas questões.

P.S.: enquanto isso, sem divulgação na mídia “oficial”, no 1º de maio “ditatorial” cubano:

1º maio cuba 2013- juan moreno

Foto: Juan Moreno

P.S.2: todo o trecho sobre zumbis me faz recordar intensamente de meu grande amigo e parceiro de “B likes” Paulo Fred, a quem dedico este texto.

Categorias: Política, Reflexões, Sociedade | Tags: , , , | 5 Comentários

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