Arquivo do dia: 24 de maio de 2013

Virar ou não virar : eis a questão ?


 

 

                     

                                                                                                                                 Por Ana Souto

Estou dando um tempo do feicibuque por isso ando meio por fora dos debates quentes do momento. Mas a julgar pelos comentários sobre a Virada Cultural São Paulo em sites e blogs, imagino que o tópico ferveu por lá. Apaixonados contra e a favor esguelaram, esgrimiram e degladiaram à vontade pelas ruas virtuais do nosso mundinho 2.0 . Como sempre,  muitos depoimentos pessoais. Solipsismo é uma espécie de mania nacional. Um traço da nossa preguiça de entender a Política? “Estava um horror pois roubaram meu celular”, “Foi uma maravilha porque tirei uma foto com meu ídolo”, “ Uma merda, cheia de gente pobre”, “Excelente, minha família gostou muito ” e por aí vai. Well, em Roma eu como os romanos. Vou falar das minhas experiências. Fui às primeiras edições do evento, pelo meio da década passada, e vivi momentos de quase epifania ao sair de um show da Cesária Évora na esquina da São João, entrar no Municipal para o espetáculo do Naná Vasconcelos, de lá ir ver acrobacias aéreas entre os prédios, depois ir assistir Metrópole projetado em um telão na Dom José Gaspar, descer ao Vale do Anhangabaú e presenciar incríveis shows de Jazz, ir para casa dormir, voltar no dia seguinte para uma rave no São Bento e zanzar e zanzar e flanar, sem o menor embaraço. Tenho ainda na memória a imagem de moças e moços sentados na relva da República, todos evidenciando procedência e poder aquisitivo tão diversos que cheguei a me perguntar: será que acabou a luta de classes?

Nesta edição cheguei mais tarde, saí mais cedo e não cheguei à Praça da República. Vi ótimos shows musicais perdi outros tantos. De olhar, assim, o público era tão diversificado quanto o das outras. Não fui assaltada, importunada ou qualquer coisa que o valha. E saiba-se que circulei sozinha das 2 às 4 da manhã. Não deu para flanar relaxada porque, macaca velha, tenho um sensor automático de zona de alerta. Também, só se estivesse cega para não perceber os braços cruzados ostensivos da PM e o ar desafiador de alguns garotos se deslocando em bando. Não me assustam por isso deu para observá-los bem. Estavam se sentindo o próprio Bope invadindo o morro. Cheguei a ver um grupo cantando a trilha do início da sequela II. Garotos tomando posse do território do princípio histórico da cidade imitando a pose da polícia que os persegue. As leis antropofágicas são implacáveis. Duvido que estes fossem os mesmos que promoveram os arrastões dos quais ouvi falar: o bom malandro, como se sabe, não berra. Voltei no domingo depois de passar pela padaria, encontrar a turma da minha rua e perguntar como tinha sido o show do George Clinton na madrugada que declinei para poupar energia. Poucos haviam resistido à caminhada, me disseram, e todos estavam definitivamente exaustos. No domingo fui em busca de teatro de rua e o primeiro que vi era a excelente Cia Pavanelli. Como sou frequentadora assídua das ruas do Centro percebi que a quantidade de pessoas circulando tinha voltado aos níveis normais de um dia de trabalho. Aí me ocorreu o que sentia, subjetivamente, como diferença principal desta edição. Não era a quantidade de gente, nem a suposta novidade da presença de drogados, bêbados ou larápios, como andei lendo por aí. Nas edições mais antigas havia do mesmo. O que senti foi que a monumentalidade e dispersão geográfica do evento, de alguma forma, tornavam a atmosfera artística rarefeita e os encontros difíceis. Ao longo do fim de semana recebi SMSs de amigos que estavam na Virada sem que os pudesse encontrar, pelas distâncias. Ouvi coisas semelhantes de jovens nos ônibus que usei para ir e voltar. Muita gente dispersa, separada por ruas e ladeiras, atarantada em meio a tanta oferta de produtos. Bingo. Aquilo parecia um shopping de produtos culturais a céu aberto com direito, inclusive, a praças de alimentação. E os trabalhadores na trabalheira de sempre : correndo de um lugar para o outro, dando duro para consumir produtos que prometem diversão. Alguns pulando de palco em palco como compulsivos telespectadores a quem faltasse o controle remoto. Percebi a arapuca e desconectei do espírito de rebanho. Encontrei dois amigos, caminhamos vagarosamente até o Largo do Paisandu onde sentei no chão e assumi a preguiça. Parênteses. Sou fã do Lafargue. Para quem não conhece, é de sua autoria a obra “ Do direito à preguiça”, jogue no Google, se não der muito trabalho. Se é verdade que Marx e Engels foram geniais ao desvendar os mecanismos de reprodução da miséria no período moderno, Lafargue foi um visionário que previu o vindouro momento glorioso do nosso futuro como espécie. Seria a nova Era de Ouro do Bárbaro Tecnicizado como disse Oswald Andrade? Fim do parênteses. Por ali estava um grupo teatral formado exclusivamente por atores de pele marrom provocante – para usar a graciosa definição que ouvi de um garoto sobre seu fenótipo. Distraída me espantei. Foi grata surpresa mas surpresa. Capturei o cabresto sutil da cultura no meu olhar. Devia era me espantar ao ver companhias formadas exclusivamente por atores de pele clara nos palcos da nação cheia de melanina. A peça fazia juz ao nome do grupo : Inventivos. Para caramba. Passeando pelas histórias menos manjadas do repertório popular das bandas do Norte à denúncia da violência sexual contra a mulher, usando embalagens descartadas, sem brilhos e enfeites iam divertindo a plateia a valer. Como sempre, em espetáculos de rua, devotos de Baco tentavam invadir a cena e eram conduzidos com habilidade pelos atores. Até que um deles resolveu improvisar um ditirambo. Enquanto a personagem-operária reivindicava salário suficiente para escolher o que comer, o espectador encarnou um corifeu e mandou esta: com esse negócio de comida a gente se vira, cata latinha, se vira, o que a gente precisa é teatro, todo dia, de graça, na rua. Aplausos e risos gerais. Novo espanto. Justo ele que nem deve ter lido Lafargue ? Pois foi exatamente o que meu ídolo disse sobre como  mataríamos o tempo, essa coisa que nos mata segundo após segundo, no Sistema da Preguiça: teríamos o teatro a nos livrar do tédio e propiciar o encontro. E como o cidadão sem teto estava convicto e a transbordar alegria! Aliás, pensando bem, a alegria no rosto de muitos sem teto talvez valesse eu deixar para lá qualquer crítica à Virada. Meus velhos conhecidos andavam por ali a distribuir sorrisos e mais sorrisos e, concordamos com o antropofágico Oswald, a alegria é a prova dos nove.

Resumo da ópera: para mim, se não foi o melhor dos mundos não chegou a desagradável nem de longe mas e daí? Noves fora nada, penso que a avaliação devia passar por perguntarmos se é apenas um pouco de purpurina sobre a pele maltratada de nossas ruas. Se há alguma evidência de que a Virada traz saúde para as vísceras da cidade. A questão é, feita as contas, saber se ela repercute para além de um fim de semana e contribui para tornar a cidade mais humanizada. Porque, como observou o herói Macunaíma visitando as terras dominadas pelo gigante Piaimã, aí as pessoas viram máquinas e as máquinas viram homens. Contra esta inversão funesta, precisamos é virar o jogo. Contra ideias mecânicas ou pre fabricadas sabe lá onde ou pra quê, toca produzir mais criativo pensamento e diálogo – com arte. Ou “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama(…) Revolução Caraíba”*.

Então, para concluir, lavro o meu pitaco : não sei de que vale tanta trabalheira concentrada em dois dias e muito menos sei pra que tanto fazer mais do mesmo. E aproveito para  cutucar com tosca paródia o Mário de Andrade, artista, pesquisador, funcionário público, esse gigante sangue bom, que trabalhou até morrer pela cultura deste rincão: “Muitos sem direito ao ócio para dar a uns poucos um vidão, muito vício e dinheiro fictício enricando quem nem parece ladrão, muito candidato a Salvador do Mundo que não passa de dublê de patrão, muita mentira no jornal, muito humano pobre tratado pior que animal, muita polícia,  pouco cidadão, os males do Século XXI, são!”  

PS. Para quem acha bonito viver correndo feito boi tangido, fique tudo como está. Para os atormentados pelos maus espíritos do tempo, tentando exorcizar os brutos, partilho a oração que o Macunaíma me ensinou : “Valei-me Nossa Senhora, Santo Antônio de Nazaré, a vaca mansa dá leite, a braba dá se quisé!”

*Manifesto Antropofágico de Oswald Andrade.  

Minhas ideias andaram a brincar com as do historiador Célio Turino que estão no livro “Na Trilha de Macunaíma. Ócio e trabalho na cidade.” Editora Sesc/ Editora Senac SP – 2005.

Categorias: Sociedade | 5 Comentários

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