Arquivo do dia: 3 de maio de 2013

Sexta de textos: na cesta das ideias de Ana Souto


A bondade desarma

Este Primeiro de Maio tive um sonho

O lugar chama-se Arsenal da Esperança.  Embatuco. Que armas deveria conter  um arsenal destes? Logo avisto alguma pista no marco central da praça onde está escrito “A bondade desarma”. Faz sentido. Pessoas que costumam portar bondade, não costumam portar armas. Mas a bondade seria uma arma ? É Primeiro de Maio, vou  à Mostra de Teatro, produzida por uma cia teatral que desenvolve seu trabalho ali. O traço comum entre os grupos teatrais que vamos ver, me disseram, é se dedicarem ao chamado “ teatro político”. Embatuco. Algum teatro não é político ? O stand up, por exemplo, não é político até o último grau ? Como rir, por exemplo, de uma piada racista, se a pessoa não estiver ideológica e politicamente alinhada com a ideia de que há comportamentos, traços humanos, situações sociais em que a diferença da cor da pele produz situações hilariantes ? E como se pode achar graça em uma piada que mostra a humilhação de um ser humano por outro, se a pessoa não compreender como se organiza sua sociedade? Nenhum espetáculo teatral escapa à sina de ser um evento efémero, em um tempo e local específicos, que as pessoas só poderão apreciar se conhecerem os valores e a forma como se organiza  seu  tempo e lugar. O complexo de prédios do Arsenal já se chamou Hospedaria do Imigrante. Na entrada há um painel dos rostos do Velho Mundo que aqui chegaram no começo do século XX, fugindo da fome e das dificuldades, em busca da terra prometida de  Pindorama. Baixo os olhos do painel e rostos mestiços me engolem. São homens do Novo Mundo que chegaram aqui, no começo do Século XXI, fugindo da fome e das dificuldades, em busca da terra prometida de Piratininga.  A primeira peça começa.  Chama-se “Aqui não, senhor patrão”. Jovens atores, vozes treinadas cantam, percutem seus corpos, dançam e dão saltos acrobáticos. Mostram a perversidade do mercado do trabalho, demonstram em uma fábrica de botas imaginária como se reproduz a riqueza do patrão e a pobreza do operário. Quase todos têm traços a lembrar os rostos do painel. Os da plateia devoram a plástica e os olhos azuis da atriz e recomendam, uns aos outros, a ducha, em voz comedida. Sussurram: essa atriz é boooa. A bondade seria uma arma?  Em seguida, um trio de atores mostra o drama de três operários em construção que não têm habitação e quando a inventam ela é chamada de invasão. Na plateia alguns riem de todos os espelhos da própria desgraça, outros parecem pensativos. Um ator entoa sambas antigos que quase ninguém conhece mas escutam calados e batucam. Vem a próxima trupe, em farsa rasgada, cantar a sina um Fulano Bosta N´água que teve a ideia brilhante de fazer um barraco-anfíbio para boiar nas enchentes mas que vai parar no bairro dos emergentes e tem de se haver com a polícia. A plateia ri e bate palmas, longa e calorosamente. A execução das canções é virtuosa e outras histórias entram em cena : um ponto de ônibus tornado privado, o garoto que para comer aquela gostosa vende a alma e o corpo para o diabo. Disso toda a plateia entende. Não precisa ler Engels, que ali quase não tem viado. Foi o que me disse um deles, antes do intervalo, acrescido do comentário cuidadoso : viado é homem como qualquer outro, aqui todo mundo é fodido, me desculpa a palavra. Voltamos da pausa ao som de um violino que destrincha o julgamento, em um tribunal- abatedouro, da chacina de Eldorado dos Carajás, bom cenário para contar as cabeças abatidas pelas injustiças sociais  de nossa nau governada pela ambição : aos milhares, índios, pretos, todos pobres. Anoiteceu, as luzes se acenderam, a atmosfera ganha algo de solene e o piano antropofágico traz Mario de Andrade e seu ódio ao burguês,  em versos estopim acendendo olhos e convocando a  coluna ereta da plateia que não se esvazia, só aumenta. Olhos abertos, rostos compungidos e uma atriz solitária no centro da cena reproduz a fala de uma Mãe de Maio para que não esqueçamos quem foi que matou seu filho. Antes que nossos corações se partam,  vem ainda um Brecht,  que de tão bem adaptado, parece ter saído do forno da padaria da casa só para demonstrar que em lugar e tempo onde o homem explora o homem, a regra é o Estado de Exceção e quase ninguém acredita na bondade.  Mas a bondade, como disse o mesmo Brecht, fracassa não porque é boa mas porque é fraca. Finda a maratona, ninguém acusa cansaço e um dos albergados comenta que queria saber como é que os artistas conseguem criar aquilo tudo. Não é tão fácil agora distinguir os atores, os convidados, os albergados. Somos mulheres e homens iguais nos direitos, diferentes nas necessidades, que escolheram passar em celebração teatral o Primeiro de Maio. Foi bom como costumam ser os encontros fraternos. Foi um Primeiro de Maio em que sonhei com um futuro em que não haja arsenais e não seja preciso ter esperança.

 

Ana Souto ainda não se convenceu que é nossa colunista de sexta. Insiste em ser colaboradora. Deixemos que ela pense que é esporádico. Desde que continue sempre às sextas conosco. Afinal, algo deve inspirar nosso final de semana!

Categorias: Sociedade | Deixe um comentário

O povo sumiu?


Image

Número de desempregados na Espanha

Depois do feriado de ontem pelo mundo, documentado em notícias e imagens pelos jornais de ampla circulação, me pergunto: será que alguém acredita nessa cobertura pífia do feriado no Brasil?

Ao comparar abordagens das manifestações em diferentes continentes, qualquer leitor se depara com uma diversidade estonteante de culturas e clamores, alguns mais pacíficos, outros nem tanto. São cartazes, faixas, instrumentos musicais, vestimentas repletas de simbolismo, nudez vestida de simbolismo também, bombas de gás lacrimogêneo: a proliferação do protesto estampado em cada matéria, em cada fotografia. Turquia, Índia, Sri Lanka, Bangladesh, Nepal, Taiwan, Grécia, Indonésia, Rússia, Estados Unidos, Canadá, Itália, Portugal, França, República Tcheca, Alemanha, Espanha, Albânia, Lituânia, Líbano, El Salvador, Cuba, Costa Rica, Chile, México, Bolívia. Não, não estou citando os países que participarão da próxima Copa nem das Olimpíadas. Esses são apenas alguns daqueles que tiveram seu Primeiro de Maio registrado em jornais de terra brasilis.

Protesta-se contra o desemprego, a Troika, contra condições diferenciadas de trabalho entre homens e mulheres, entre nativos e imigrantes, defendem-se a profissão mais antiga do mundo, as melhorias das condições de vida, o funcionalismo público, a reforma no sistema de imigração norte-americano, criticam-se a visita de Obama, as privatizações, homenageia-se Chávez, repudia-se a ação de grupos neonazistas alemães.

Image

Show para brasileiros

E o Brasil? O que os brasileiros fizeram nesse Primeiro de Maio? Bom, os brasileiros foram a shows e, de acordo com o jornal O Globo, eles também vaiaram a CUT quando seus representantes foram aos microfones tratar da questão da regulação de mídias numa manifestação em São Paulo. Não, manifestação não, que isso só acontece fora do Brasil; aqui dentro a palavra usada é comemoração, ou como consta no site Terra, missas e eventos sindicais. Tudo mostrado com viés festivo: ranço dos tempos de Vargas, o Pai dos Pobres.

Ao nos determos, porém, na leitura da matéria, quão grande não é a nossa surpresa quando verificamos que os vaiados foram os políticos presentes ao Ato e não a CUT.

Vejamos o primeiro parágrafo: “Em ato político marcado pelas vaias do público, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) iniciou ontem, em São Bernardo do Campo (SP), a coleta de assinaturas para a apresentação de um projeto de iniciativa popular de controle da mídia”.

A manipulação na seleção vocabular cria a ideia de que há rejeição popular unânime em relação à CUT e ao projeto, que estaria ligado à censura, ao “controle”, quando, na verdade, o que se busca é a regulamentação do previsto em constituição, permitindo a ampliação da liberdade de expressão e o fim dos monopólios familiares nos diferentes meios de comunicação brasileiros. Para mais esclarecimentos e adesão à causa (tamo junto!), vejam http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/index.php/2013-04-30-15-58-11

democratização midia

Por uma Lei da Mídia Democrática

Agora o último parágrafo: “No momento do ato político, houve vaias às autoridades políticas, o que levou o apresentador a, em mais de uma oportunidade, pedir ao público que parasse de vaiar”.

Na galeria de fotos- boa fonte para se analisar a interação com o texto verbal, as sutilezas ou ausência delas na perpetuação de estigmas -, na galeria de fotos, a primeira foto não era de ninguém mais ninguém menos que Aécio Neves. Na sequência, vemos Gilberto Carvalho, Fernando Haddad, Eduardo Campos. Cadê o povo, caramba??? Até no Dia do Trabalhador, mídia e políticos querem fazer o povo de espectador!!!

A combinação entre textos e imagens que refletiam o mundo mostra interação, sentimento de pertencimento, consciência política. Na combinação que mostra o Brasil, somos meros receptores de discursos de políticos, que, mesmo vaiados, têm lugar de destaque nas reportagens sobre o Dia. E a vaia é o nível máximo de protesto a que nos permitimos? Será mesmo? Tenho minhas dúvidas tanto sobre a realidade quanto sobre a cobertura dela.

e agora jose

Termino drummondiano indignada:

E agora, José? A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu (…).

Categorias: Crítica, Cultura, Mídia, Política, Reflexões, Sociedade | Tags: , , , , | 1 Comentário

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.