Arquivo do dia: 18 de maio de 2013

Ad hominem per litteras*


LETRAS- foda

Ao homem pelas letras. São elas que nos fazem quem somos afinal. Dentre todas as notoriedades que distinguem o homo sapiens doutras espécies, não creio que nada se sobreponha àquilo que está circunscrito ao mundo das letras, mesmo.

É óbvio que muitas e diferentes áreas do saber puxam braseiros inteiramente incandescentes pra sua sardinha e demais especiarias cozinhantes quando o assunto é a singularização do homem dentre os animais. Contudo, nada é mais alicerçante do que seja o homem do que sua capacidade de representação, de simbolizar a realidade (se é que se pode falar em realidade, uma vez que a mesma já é um constructo e sequer necessário. Basta lembrar que, em grego, em que pesem as arrojadas formulações filosóficas desde a antiguidade não havia, nesse idioma, uma palavra sequer que correspondesse ao conceito, para nós, de realidade). Em outras palavras, o homem é o animal que não pode entrar em contato direto com a natureza circundante, seja qual for a ideia de natureza que se leve em consideração. A nós, só é permitida uma relação mediada com o meio circundante. Lidamos com o mundo inteiro, existente ou não, por meio duma malha simbólica e só assim nos foi possível o desenvolvimento duma outra possibilidade definidora do ser humano: reproduzir informação, replicá-la, registrá-la, editá-la, ressignificá-la, perpetuá-la. Da mesma forma que desenvolvemos instrumentos para o manuseio e interação com o mundo para diversas finalidades, desde tempos imemoráveis, também contamos com o desenvolvimento de instrumental simbólico com o qual decodificamos a natureza e, para sempre, alijamo-nos dela. A essa plêiade simbólica denominamos língua, a mais sofisticada e plena das linguagens.

Logo, como seres humanos, todos possuímos uma língua e essa é nossa chave de acesso ao mundo. É ela que nos permite organizar todos os conceitos, formular novos, conceber as sensações mais primárias, é por ela que sentimos e formulamos esse sentir, nela nos decepcionamos, apaixonamo-nos, projetamos, recordamos, sonhamos nela e circunscrevemos todo e qualquer conhecimento de mundo que tenhamos ou pretendamos desenvolver por meio dela. Nossa língua é o limiar dos confins de nossa existência. Só por ela podemos almejar liberdade, inclusive porque liberdade é um conceito nela formulado e assim o é em nossa língua (note que, em inglês, por exemplo, teríamos aí freedom ou liberty, duas dimensões distintas de liberdade que não são assim concebidas em nossa conceptualização de mundo, via língua portuguesa).

Não é à toa que tudo de que Deus precisou pra construção do mundo foi da palavra/verbo. Com ela, é possível dar existência a rigorosamente qualquer coisa, mesmo a deuses. E Pessoa que me perdoe, mas não é minha pátria que é minha língua; meu universo inteiro é minha língua.

Nossa língua é, portanto, um ponto de visagem do mundo. Como diz meu eterno orientador José Carlos de Azeredo, “O ser humano vive no mundo como corpo, mas o mundo vive nele como linguagem”. E nossa linguagem prioritária é nossa língua. VIVER EM PORTUGUÊS!

Mas aí está apenas a ponta desse monumental iceberg. Meu objetivo aqui é, de fato, decantar e dividir, meu amor pela língua e por seu estudo. Tentar ser íntimo da língua, a cada dia mais, é uma propulsão vital pra mim. Ora, se tudo se dá por meio da língua, estudá-la é lidar com uma vastidão de possibilidades de análises de funcionamento, inter-relações, implicaturas, interpretações, investigações inesgotáveis, quanto mais pela dinamicidade da língua.

Fico absurdado (neologismo maravilhoso criado por meu querido aluno Rugal) com a compreensão do estudo da língua como de algo estanque ou dum conjunto de regras estáticas ou do que seja “certo”. Pasmem! A língua é o que é e como é, em sua infinitude simbólica. Assim é seu estudo. Outra coisa é a norma culta da língua, eivada de incoerências de análise, arbitrariedades e anacronismos da mais variada ordem, mas, ainda assim, uma importante referência para prestígio, acesso e inclusão social (os quais, em si, sequer são critérios linguísticos) e, por isso, merecedora de estudo e de domínio de uso. Mas, essa variedade de língua que não é mais certa, mais bonita ou mais cheirosa do que qualquer outra só é o que é por uma questão mais de ordem sociológica do que linguística. É preciso dialética e bom senso para lidar com isso. Outra coisa, a língua é pulsante e crescentemente mais vasta do que a norma culta. Há tantos fenômenos e construções que sequer frequentam o universo dessa referência de prestígio social.

AULA DE PORTUGUÊS (Carlos Drummond de Andrade)

A linguagem

na ponta da língua,

tão fácil de falar

e de entender.

 

A linguagem

na superfície estrelada de letras,

sabe lá o que ela quer dizer?

 

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,

e vai desmatando

o amazonas de minha ignorância.

Figuras de gramática, equipáticas,

atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.

 

Já esqueci a língua em que comia,

em que pedia para ir lá fora,

em que levava e dava pontapé,

a língua, breve língua entrecortada

do namoro com a prima.

 

O português são dois; o outro, mistério.

É curioso que, quando decidi por Letras o fiz motivado, fundamentalmente, pelo estudo da Literatura, que ainda me seduz de todo. Fui me especializar em língua pela resistência que tinha a seu estudo e mesmo, francamente falando, a lidar com ela em exercício profissional. Que mundo paradisíaco se abriu a mim a partir do dia 10 de março de 2008, quando iniciei meu primeiro curso como ouvinte no Mestrado de Língua Portuguesa da UERJ. Como sou arrebatadamente apaixonado pelo estudo de Língua hoje, por captar seus dinamismos, suas sutilezas, seu funcionamento real, suas especificidades linguageiras, buscar entender aquilo que ainda soa desconexo…

Não quero aqui citar exemplos, pois temo que isso dê a meu texto um tom acadêmico, professoral e, possivelmente, excludente. Quero externar meu amor, meu encantamento desvairado pela língua. Tento expressar isso em minhas salas de aulas, com textos e exemplificações de toda e qualquer variedade de língua que se possa prestar à reflexão de como funciona a língua afinal. Me delicio em sutilezas que criam possibilidades não vislumbradas no uso espontâneo, mas que estão lá, à disposição. Sentido… a língua é toda sentido! E nada é mais íntimo duma cultura do que sua língua.

Ah… e ainda há a literatura. Não bastasse a língua em si, ainda contamos com essa fantástica dimensão de extrapolação da própria língua(gem), que se recria, se flexiona, se expande, se singulariza… Ah, Camões, Machados, Pessoas, Saramagos, Gracilianos, Limas Barretos, Mias Coutos… Vocês nos levam além! Nos fazem gigantes! Adamastores plenos e vigorosos!

Meu arrebatamento pela língua me confere um sonho inusitado: conhecer todos os países que falam português e vivenciar essas outras formas, híbridas possivelmente, devido às línguas locais, de se viver em português. Aliás, em 19 de maio de 2002, o Timor Leste tornava-se o mais novo país lusófono do mundo, conquistando a temporã independência perante a Indonésia, depois de ter sido colônia portuguesa. Quem entende de lusofonia e merecia até ser embaixador dessa causa é Martinho da Vila:

lusofonia 2

Comunidade lusófona.

Lusofonia (Martinho da Vila)

Eu gostaria de exaltar em bom Tupi

As belezas do meu país

Falar dos rios, cachoeiras e cascatas

Do esplendor das verdes matas e remotas tradições

Também cantar em guarani os meus amores

Desejos e paixões

Bem fazem os povos das nações irmãs

Que preservam os sons e a cultura de raiz

 

A expressão do olhar

Traduz o sentimento

Mas é primordial

Uma linguagem comum

Importante fator

Para o entendimento

Que é semente do fruto

Da razão e do amor

 

É sonho ver um dia

A música e a poesia

Sobreporem-se às armas

Na luta por um ideal

E preconizar

A lusofonia

Na diplomacia universal

bandeira-timor

Bandeira de Timor Leste.

Viver lusofonamente: existência crescente! Pela língua, por sua literatura, pela consciência dum mundo lusófono que crepita e pulsa dentro e fora de nós, à espera de eclodir.

Por amor às Letras, que me vivificam!

P.S.: fica a dica do ótimo filme Língua: vidas em português, de 2002. Direção: Victor Lopes.

lingua

* Ao professor, orientador, amigo, parceiro, companheiro de copo e referência intelectual José Carlos de Azeredo, autor da Gramática Houaiss da língua portuguesa, dentre outros títulos, e à Amanda Porto, estudante do 3º ano do Colégio de Aplicação da UFRJ, cujos olhos brilham avidamente nas aulas de Língua Portuguesa e a quem tento seduzir a fazer Letras.

Categorias: Cultura, Reflexões | Tags: , , , , | 3 Comentários

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